quarta-feira, 30 de maio de 2012

REA: práticas colaborativas na educação

Primeiro livro sobre Recursos Educacionais Abertos (REA) no Brasil

Fonte:  ARede

29/05/2012 - A cerca de um mês do Congresso Mundial sobre Recursos Educacionais Abertos (REA), liderado pela Unesco em Paris, com a presença de ministros de Educação e outras autoridades governamentais de vários países, será lançado, no dia 30 de maio, em São Paulo, o primeiro livro com artigos reflexivos e experiências brasileiras na área.

Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas, organizado por Nelson Pretto (UFBA), Carolina Rossini (REA Brasil/GPOPAI-USP) e Bianca Santana (Instituto Educadigital/Casa de Cultura Digital) trata da questão da educação aberta e dos recursos educacionais abertos. Com a publicação, os autores esperam ampliar o debate sobre os usos da internet nas escolas, da democratização do acesso à internet e aos recursos educacionais a populações de menor renda. A obra trata ainda das possibilidades da internet contribuir para o desenvolvimento humano, principalmente no direito de todos à aprendizagem ao longo da vida.

Financiado pelo edital de publicações do Comitê Gestor da Internet (CGI) no Brasil e pela Open Society Foundation, trata-se de uma publicação conjunta da EDUFBA e da Casa da Cultura Digital. Cada um dos capítulos vai abordar o tema de uma perspectiva diferente, prática ou teórica, já que foi produzido de forma colaborativa a partir de uma chamada na comunidade REA Brasil. Todo o processo de produção foi aberto, com intensivo uso de softwares e fontes livres. Os autores são professores da educação básica, acadêmicos e profissionais da área da educação e das ciências sociais, entusiastas e ativistas da cultura livre e digital, políticos, juristas e gestores públicos.

Além da versão impressa, o livro está disponível em um site na internet (//livrorea.net.br) de forma que todo o conteúdo pode ser baixado, utilizado e remixado à vontade. A EDUFBA é uma das editoras que participa do pioneiro projeto REA Scielo Livros (http://books.scielo.org/) e em breve o livro também estará disponível no site do Scielo.

Para Flavia Rosa, diretora da EDUFBA, “o processo de abertura do acesso ao conhecimento produzido pelas universidades é fundamental para a democratização do conhecimento. No repositório institucional da UFBA já temos mais de 200 livros disponíves para serem baixados integralmente”.

Recursos Educacionais Abertos (REA)

O conceito de recursos educacionais abertos (REA), cunhado pela Unesco em 2002, trata da criação de materiais educacionais abertos “para consulta, uso e adaptação”. “Esse conceito está centrado na ideia dos commons- de que o conhecimento produzido pela humanidade pertence a toda a humanidade - e permite problematizar diversos elementos importantes para que a inovação em rede aconteça nos processos educativos: propriedade intelectual, softwares, conexão de banda larga, educação de professores, material didático, preço, acesso e tantos outros temas e aspectos ligados à questão”, explica Bianca Santana, uma das organizadoras e autoras. O lançamento
Em São Paulo o primeiro lançamento acontecerá dia 30 de maio, quarta feira, às 19 horas na Casa de Cultura Digital durante o Simpósio Recursos Educacionais Abertos: promovendo o acesso e o intercâmbio de conhecimento, organizado pela Unicamp e pela Casa de Cultura Digital. O evento é gratuito e será transmitido ao vivo pela internet através do link: http://educacaoaberta.org/rea/eventos/simposio2012

Lançamentos regionais estão previstos durante o mês de junho em diversos locais do Brasil (Rio, Salvador, Brasília) e em Paris, durante o Congresso da UNESCO, que acontecerá de 20 a 22 de junho. No evento em Paris estarão presentes um dos organizadores do livro, Nelson Pretto, e os autores Tel Amiel (Unicamp) Andreia Inamorato (UFF) e Priscila Gonsales (Instituto Educadigital/REA Br).

Imagem do cartaz do evento em http://educacaoaberta.org/rea/wp-content/uploads/2012/05/poster-rea-ccd.png


O Livro
RECURSOS EDUCACIONAIS ABERTOS: práticas colaborativas e políticas públicas
Bianca Santana, Carolina Rossini e Nelson De Luca Pretto - organizadores
Edufba e Casa da Cultura Digital via Maracá Educação e Tecnologias.
ISBN: 978-85-232-0959-9


Sumário
Apresentação - Bianca Santana, Carolina Rossini e Nelson De Luca Pretto
1.Educação aberta: configurando ambientes, práticas e recursos educacionais - Tel Amiel
2. REA: o debate em política pública e as oportunidades para o mercado - Carolina Rossini e Cristiana Gonzalez
3. Educação aberta: histórico, práticas e o contexto dos recursos educacionais abertos - Andreia Inamorato dos Santos
4.Professores-autores em rede  - Nelson De Luca Pretto
5.Formatos abertos - Sergio Amadeu da Silveira
6.REA na educação básica: a colaboração como estratégia de enriquecimento dos processos de ensino-aprendizagem - Lilian Starobinas
7.Materiais didáticos digitais e recursos educacionais abertos - Bianca Santana
8.Aberturas e rupturas na formação de professores - Priscila Gonsales
9.Recursos educacionais abertos na aprendizagem informal e no autodidatismo - Rafael Reinehr
10.Wikimedia Brasil e recursos educacionais abertos - Heloisa Pait, Everton Zanella Alvarenga e Raul Campos Nascimento
11.Produção de REA apoiada por MOOC - Marcelo Akira Inuzuka e Rafael Teixeira Duarte
12.Equilíbrio entre os direitos autorais e as necessidades da educação - Paulo Darcie entrevista Paulo Teixeira
13.Uma política estadual de REA para beneficiar professores, alunos e o poder público - Paulo Darcie entrevista Simão Pedro
14. A experiência pioneira do município de São Paulo - Paulo Darcie entrevista Alexandre Schneider
15. Projeto Folhas e Livro Didático Público - Paulo Darcie entrevista Mary Lane Hutner
16.A experiência REA em um colégio tradicional da cidade de São Paulo - Paulo Darcie entrevista Valdenice Minatel e Verônica Cannata
17. O evento de lançamento


Transmissão ao vivo pela internet: http://educacaoaberta.org/rea/eventos/simposio2012

30 de maio (quarta-feira)

14:00-15:45 – Abertura: REA e a educação brasileira (Alexandre Shneider, Simão Pedro e Bianca Santana)
16:15-18:00 – Políticas públicas, padrões, e licenças (Sergio Amadeu, Cristiana Gonzalez, Priscila Gonsales)
19:00-21:00 – Lançamento do livro

31 de maio (quinta-feira)

09:30-11:00 – REA na educação básica (Mary Lane Hutner, Tel Amiel, Nelson Pretto)
11:30-13:00 – REA na educação superior e não formal (Adriana Luccisano, Marcelo Akira, Andreia Inamorato)
13:00-13:30 – Fechamento


Mais informações:
Nelson Pretto - nelson@pretto.info, (71) 87791906
Bianca Santana: biancasantana@gmail.com, (11) 8168-1274

segunda-feira, 28 de maio de 2012

As leis, os marcos regulatórios, as reflexões necessárias

Marco Civil: 'Se não garantirmos a neutralidade da rede agora, ela será quebrada', diz Sérgio Amadeu


Felipe Bianchi
Do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé

28/05/2012 - A audiência pública em torno do Marco Civil da Internet reuniu parlamentares, acadêmicos e representantes da sociedade civil para debater o tema, sábado passado, durante o 3º Encontro Nacional de Blogueiros, em Salvador. Considerada pelos debatedores “uma das legislações mais avançadas do mundo”, os participantes do 3º BlogProg puderam dar suas contribuições no debate.

Para Sérgio Amadeu, representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), o desafio do Marco Civil é “garantir a privacidade em uma sociedade de rastros digitais”. A questão da guarda de logs e a neutralidade da rede foram os pontos que geraram mais discussão. “Além de ferir a liberdade de expressão e de navegação, a quebra da neutralidade da rede vai mudar a inovatividade e a lógica de criação da Internet”, diz. Apesar de o documento definir o conceito de neutralidade da rede, a queixa de Sérgio Amadeu, de Renata Mielli, do Barão de Itararé, e da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) é que o texto prevê uma regulamentação posterior específica para o ponto. “A Internet não pode ser que nem os Correios, onde quem paga mais tem o serviço mais rápido”, afirma Mielli.

De acordo com a jornalista, um setor da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) propõe a privatização de todo o serviço de telecomunicações. “Se o Marco Civil não garantir a neutralidade da rede, a regulamentação ficará a cargo de quem? Da Anatel?”, questiona. Na avaliação de Amadeu, ou aprovamos a neutralidade da rede agora ou quebramos a neutralidade da rede. “Para atender à criatividade e à liberdade de navegação, não é razoável que a operadora filtre ou bloqueie o tráfego de conteúdos”, justifica o pesquisador. Renata Mielli também provocu a discussão acerca da guarda de logs, outra questão que gera polêmica na regulação da Internet. “Guardar registros é garantir a segurança do usuário? Inverter o princípio constitucional da presunção da inocência não é a resposta”, afirma.

Amadeu endossou o coro: determinar que todos os prestadores de serviçoes guardem todos os logs de acesso – afirmou – não é razoável. “Os internautas são inocentes até que se prove o contrário”, diz. Jandira Feghali também se manifestou a favor da regulamentação da neutralidade da rede no Marco Civil da Internet. Quanto à questão da segurança e da privacidade, a deputada acredita que “é preciso encontrar uma saída para as contradições expostas na audiência”. Segundo ela, há contradições tanto no texto quanto em conceitos. “Ao invés de ‘incentivar o uso da Internet’, devemos fortalecer o conceito da universalização”, opina.

Contribuições acadêmicas


Além de Sérgio Amadeu, os professores André Lemos e Wilson Gomes, da Universidade Federal da Bahia, também participaram do seminário. Lemos ressaltou a natureza “colaborativa e aberta” para defender o princípio de neutralidade da rede. “Não podemos cercear as formas de comunicação, produção e compartilhamento próprias da Internet. A Internet não pode se transformar em um serviço como o da TV a cabo”, afirma. Para Lemos, o Marco Civil estabelece princípios adequados para garantir a liberdade na Internet.

Wilson Gomes destacou a finalidade do documento: “A Internet muda muito rápido, o que torna a regulamentação complicada. O Marco Civil estabelece diretrizes gerais”. Como contribuição, Gomes propôs legisção contra discursos de ódio, que firam grupos minoritários, como manifestações racistas e homofóbicas”.

Processo democrático

O deputado João Arruda (PDMB-PR), presidente da Comissão Especial formada pela Câmara para debater o Marco Civil da Internet, destacou as ferramentas de participação popular na construção do documento. “A Internet influencia a vida pública e estimula a participação política. É uma ferramenta pública”, diz. O Portal e-Democracia, da Câmara, transmitiu o debate ao vivo e os participantes puderam enviar suas contribuições pelo chat.

O deputado Alessandro Molon, (PT-RJ), relator do Marco Civil da Internet, também ressaltou o processo democrático de elaboração do projeto. “Além de recebermos contribuições pelo e-Democracia e pelo Twitter, estamos realizando diversos seminários pelo Brasil, para ouvirmos as sugestões presencialmente”. O III Encontro de Blogueiros vai até domingo (27) e discute questões relacionadas à blogosfera, liberdade na Internet e liberdade de expressão.
Addthis

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Melhor assim: liberdade na rede

Crimes na Web: minimizado, PL Azeredo é aprovado


Luís Osvaldo Grossmann
Da Convergência Digital


23/05/2012 - A Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara aprovou nesta quarta-feira, 23/5, o projeto 84/99, mais conhecido como PL Azeredo, que trata da tipificação de crimes cometidos com o uso da Internet. Uma semana depois da tensa sessão que acabou encerrada por falta de quórum, a Comissão de Ciência e Tecnologia aprovou o projeto, conforme acordo, com apenas um voto contrário, do deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).

O projeto, que agora segue para a Comissão de Constituição e Justiça e pode, daí, partir direto para a sanção presidencial, foi profundamente reduzido, com a eliminação de 17 dos 23 artigos previstos no substitutivo aprovado no Senado, de autoria de Eduardo Azeredo (PSDB-MG).

A aprovação faz parte de um acordo que já permitiu, na semana passada, a aprovação em Plenário – o projeto seguiu para o Senado – da proposta alternativa sobre crimes cibernéticos (o PL 2793/2011), apresentada pelos petistas Paulo Teixeira (SP) e Emiliano José (BA), além das deputadas Luiza Erundina (PSB-SP) e Manuela D´Ávila (PCdoB-RS) e João Arruda (PMDB-PR).

Azeredo aceitou retirar 17 dos 23 artigos daquele texto – foram eliminados os artigos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 20, 21 e 22. Dessa forma, o texto que já foi chamado de AI 5 Digital, ficou restrito a quatro pontos: falsificação de dado eletrônico ou documento particular, favor ao inimigo (traição), racismo e previsão de criação de estrutura policial para combate a esses crimes.

Pelo acerto, foram excluídos pontos que eram considerados dúbios, por permitirem interpretações abrangentes que poderiam restringir liberdades de uso da Internet. Ou seja, itens como o acesso a dispositivo de comunicação ou sistema informatizado e a transferência de dados.

Com o acordo, ficaram de fora pontos considerados mais polêmicos. Por exemplo, artigos que remetem a conceitos de “invasão” de sistemas informatizados, ou mesmo “manter ou fornecer” dados acessados sem autorização. As redações propostas permitiam a interpretação que penalizava redes P2P ou, mesmo, o uso “indevido” de equipamentos como iPods.

As redes de compartilhamento – de músicas, por exemplo – poderiam ser fortemente atingidas com a criminalização da “obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação”, como era previsto no substitutivo que chegou a ser aprovado pelo Senado Federal.

O texto original do substitutivo de Azeredo também previa penalizar quem acessasse “rede de computadores”, ou “dispositivo de comunicação”, o que daria margem às interpretações dúbias – afinal, o conceito de dispositivo de comunicação poderia abranger diversos tipos de equipamentos e tornar ilegal, por exemplo, desbloquear um celular.

Também por força da polêmica acabaram ficando de fora artigos que remetiam ao “controle” de usuários por parte dos provedores – havia previsão de denúncia de atividades suspeitas. Igualmente acabaram excluídos os artigos que tratavam da guarda de registros de conexões, ponto esse que acabou migrando para o Marco Civil da Internet, em tramitação na Câmara.

Com as mudanças, aquilo que já foi um projeto de lei classificado como assustador para militantes da Internet livre acabou reduzido a quatro pontos: equipara cartões de crédito/débito a documentos particulares, nos casos de falsificação; pune a transferência de informações de segurança (ou seja, traição, em caso de guerra); a determinação para que a polícia crie estruturas de combate aos crimes eletrônicos e, finalmente, a possibilidade de retirar do ar páginas com mensagens racistas.

Veja como ficou a nova versão do PL 84/99:

1) No art. 298 do Decreto-Lei no 2.848/1940 (Código Penal), que trata de falsificação, é criado um parágrafo único para definir que “equipara-se a documento particular o cartão de crédito ou de débito”.

2) Os incisos II e III do art. 356 do Capítulo I do Título I do Livro II da Parte Especial do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal
Militar), passam a vigorar com a seguinte redação:
“CAPÍTULO I DA TRAIÇÃO
Favor ao inimigo
Art. 356. (...)
II - entregando ao inimigo ou expondo a perigo dessa consequência navio, aeronave, força ou posição, engenho de guerra motomecanizado, provisões, dado eletrônico ou qualquer outro elemento de ação militar; III - perdendo, destruindo, inutilizando, deteriorando ou expondo a perigo de perda, destruição, inutilização ou deterioração, navio, aeronave, engenho de guerra motomecanizado, provisões, dado eletrônico ou qualquer outro elemento de ação militar”.

3) Os órgãos da polícia judiciária estruturarão, nos termos de regulamento, setores e equipes especializadas no combate à ação delituosa em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado.

4) O inciso II do § 3o do art. 20 da Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 20 (...) § 3o (...) II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas,
televisivas, eletrônicas, ou da publicação por qualquer meio”.

O projeto, que agora segue para a Comissão de Constituição e Justiça e pode, daí, partir direto para a sanção presidencial, foi profundamente reduzido, com a eliminação de 17 dos 23 artigos previstos no substitutivo aprovado no Senado, de autoria de Eduardo Azeredo (PSDB-MG).

A aprovação faz parte de um acordo que já permitiu, na semana passada, a aprovação em Plenário – o projeto seguiu para o Senado – da proposta alternativa sobre crimes cibernéticos (o PL 2793/2011), apresentada pelos petistas Paulo Teixeira (SP) e Emiliano José (BA), além das deputadas Luiza Erundina (PSB-SP) e Manuela D´Ávila (PCdoB-RS) e João Arruda (PMDB-PR).

Azeredo aceitou retirar 17 dos 23 artigos daquele texto – foram eliminados os artigos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 20, 21 e 22. Dessa forma, o texto que já foi chamado de AI 5 Digital, ficou restrito a quatro pontos: falsificação de dado eletrônico ou documento particular, favor ao inimigo (traição), racismo e previsão de criação de estrutura policial para combate a esses crimes.

Pelo acerto, foram excluídos pontos que eram considerados dúbios, por permitirem interpretações abrangentes que poderiam restringir liberdades de uso da Internet. Ou seja, itens como o acesso a dispositivo de comunicação ou sistema informatizado e a transferência de dados.

Com o acordo, ficaram de fora pontos considerados mais polêmicos. Por exemplo, artigos que remetem a conceitos de “invasão” de sistemas informatizados, ou mesmo “manter ou fornecer” dados acessados sem autorização. As redações propostas permitiam a interpretação que penalizava redes P2P ou, mesmo, o uso “indevido” de equipamentos como iPods.

As redes de compartilhamento – de músicas, por exemplo – poderiam ser fortemente atingidas com a criminalização da “obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação”, como era previsto no substitutivo que chegou a ser aprovado pelo Senado Federal.

O texto original do substitutivo de Azeredo também previa penalizar quem acessasse “rede de computadores”, ou “dispositivo de comunicação”, o que daria margem às interpretações dúbias – afinal, o conceito de dispositivo de comunicação poderia abranger diversos tipos de equipamentos e tornar ilegal, por exemplo, desbloquear um celular.

Também por força da polêmica acabaram ficando de fora artigos que remetiam ao “controle” de usuários por parte dos provedores – havia previsão de denúncia de atividades suspeitas. Igualmente acabaram excluídos os artigos que tratavam da guarda de registros de conexões, ponto esse que acabou migrando para o Marco Civil da Internet, em tramitação na Câmara.

Com as mudanças, aquilo que já foi um projeto de lei classificado como assustador para militantes da Internet livre acabou reduzido a quatro pontos: estabelece como crime a falsificação de dado eletrônico, inclusive cartões de crédito/débito; a transferência de informações de segurança (ou seja, traição); a determinação para que a polícia crie estruturas de combate aos crimes eletrônicos e, finalmente, a possibilidade de retirar do ar páginas com mensagens racistas.

Veja como ficou a nova versão do PL 84/99:

1) O caput do art. 298 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) passa a vigorar com a seguinte redação:
“Falsificação de dado eletrônico ou documento particular Art. 298. Falsificar, no todo ou em parte, dado eletrônico ou documento particular ou alterar documento particular verdadeiro”. Neste é criado um parágrafo único para definir que “equipara-se a documento particular o cartão de crédito ou de débito”.

2) Os incisos II e III do art. 356 do Capítulo I do Título I do Livro II da Parte Especial do Decreto-Lei no 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal
Militar), passam a vigorar com a seguinte redação:
“CAPÍTULO I DA TRAIÇÃO
Favor ao inimigo
Art. 356. (...)
II - entregando ao inimigo ou expondo a perigo dessa consequência navio, aeronave, força ou posição, engenho de guerra motomecanizado, provisões, dado eletrônico ou qualquer outro elemento de ação militar; III - perdendo, destruindo, inutilizando, deteriorando ou expondo a perigo de perda, destruição, inutilização ou deterioração, navio, aeronave, engenho de guerra motomecanizado, provisões, dado eletrônico ou qualquer outro elemento de ação militar”.

3) Os órgãos da polícia judiciária estruturarão, nos termos de regulamento, setores e equipes especializadas no combate à ação delituosa em rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado.

4) O inciso II do § 3o do art. 20 da Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 20 (...) § 3o (...) II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas,
televisivas, eletrônicas, ou da publicação por qualquer meio”.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

As diversas faces do poder: comunicação, acesso à informação, inovação, economia e protecionismo



Rich Karlgaard: The Future Is More Than Facebook

Social media is already passé in Silicon Valley. America's innovation engine is now focused on transportation, energy and manufacturing.


In March 1986, Microsoft ended its first day as a public company with a market capitalization of $780 million. Its value grew more than 700 times that over the next 13 years and made Bill Gates, in 1999, the richest man ever with a net worth of $101 billion. When Facebook goes public this Friday its market cap could easily hit $100 billion, bringing founder Mark Zuckerberg's net worth to more than $18 billion. That's about 50 times what Mr. Gates was worth after Microsoft's IPO.
Facebook's big payday should be cause for celebration in a liberal democracy. Instead it has provoked two kinds of anxiety. Both imply America's best days are over.
The first is that America's innovation engine, Silicon Valley, is again overheating. Evidence: Last month Facebook swapped $1 billion in pre-IPO shares and some cash for Instagram, a two-year-old start-up with 11 employees and no revenue. A week later, another Silicon Valley start-up called Splunk, slyly allied with the decades's two hottest buzz generators—cloud computing and big data—went public at a $1.5 billion value on just $121 million in sales this year. Yet shareholders swooned for Splunk and bid up its $17 IPO share price to $37 in the first two days of trading.
This has to be a bubble, right?
The second worry is that only a certain kind of company is getting rich in the Obama economy. These are outfits that make algorithms—bits of software code cleverly strung together to take the form of an iPhone operating system, a LinkedIn social network, or a proprietary trading scheme.
The modern-day code rockers are not mere nerds, either. They form an Algorithmic Army of slightly surreal folks like, well, Mr. Zuckerberg. They seem to be pale men with oddly flat voices and faraway gazes who prefer to hide out in the bathroom during the IPO roadshow. When finally coaxed onto the stage to face investors, the great Zuckerberg appeared in a hoodie.
That can't be America's future, can it?
The debate about whether America will own the global economy in the 21st century or else become a dude ranch for rich Chinese and Brazilians hinges on whether innovation can break out of the box. Can it go mainstream and transform the really big things: transportation, energy, electricity, food production, water delivery, health care and education?
If it can't do that—or if it is thwarted by high taxes and complex regulation—then welcome to the new normal of 2% annual growth. Our future will become sadly familiar. Just follow Spain, France and Great Britain down history's sinkhole of lost status and influence.
But America can do better than that, and it will. In fact, the seeds are being planted now. In Silicon Valley, investing in social-media companies is already passé. Last year, as private investors were bidding up Facebook's valuation to $100 billion, the veteran Silicon Valley investor Roger McNamee said "the next 500 social-media companies will lose money." He's broadly right. The time to make big returns in Facebook and in social media has passed.
There's a growing interest among bright minds to apply "exponential technologies" (the phrase used by Ray Kurzweil and Peter Diamandis, founders of Singularity University) to solve problems much larger than whom to friend on Facebook. Transportation is one of those big deals. Would you rather own a car, an iPad or a Facebook membership? Thought so. By 2050 the planet will have nine billion inhabitants and three billion cars. This will create huge demand for fuel and road access.
Silicon Valley's biggest new thing, therefore, is not Instagram or Splunk but Google's robot-driven car. The Google car is only four years old. In 2008, it could barely get around pylons in a parking lot. Last year it got down San Francisco's snaky Lombard Street with no human driver and today it races over mountain passes with only R2-D2's second cousin behind the wheel. This rate of progress is normal in the algorithmic world, but it is new in the physical world.
Manufacturing? America will own the mid-21st century. Geopolitical instability and rising oil prices will wreck the late 20th-century rationale for outsourcing. Chinese labor costs are rising 20% a year while robotic costs are dropping by 30% a year. Do the math.
"Made in the USA" is set to have a major comeback. The showstopper will be 3-D printing, which makes physical objects from a digital file. It will turn our artists into artisanal manufacturers and reward American-style creativity.
Energy? America's natural-gas and shale oil boom will bridge us to 2030 or so when solar energy and algae-based fuels will be closer to market parity and begin to make a real contribution. As long as I'm on the topic of the natural-gas boom, what key technology made this happy surprise possible? High-tech horizontal drilling. Who knew? We were all too busy fiddling with our iPhone apps to see it coming.
Question: If America could have only one of the following—Facebook, Twitter or horizontal drilling—which would be the smarter choice?
Happily, we don't have to make that choice. America remains the world's innovator, a country without limits.
Mr. Karlgaard is publisher of Forbes.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

O que significa, afinal, dizer "um grande escritor"? - Homenagem a Carlos Fuentes

O escritor mexicano Carlos Fuentes, no centro da imagem, junto ao peruano Mario Vargas Llosa e ao colombiano Gabriel García Márzquez ( foto de El País)

Carlos Fuentes: escrever para ser

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo. Fuentes acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. O artigo é de Eric Nepomuceno.

Vejo algumas fotos em preto e branco. E me detenho em uma, feita em algum dia incerto da Barcelona daqueles anos 70, mostrando um Vargas Llosa alto e sorridente, um Carlos Fuentes um tanto formal, e um Gabriel García Márquez cabeludo e com bigodes que parecem desenhados a carvão. Fuentes ainda fumava: na mão esquerda, posta fraternalmente sobre o ombro de García Márquez, aparece o cigarro. Ali estão eles: Vargas Llosa aparece à esquerda, Fuentes está no centro, García Márquez à direita. Exatamente o avesso do que a vida reservaria aos três, ou do que os três fariam de suas vidas.

Na foto, os três são jovens, e parecem confiantes, e ocupam o inverso do espaço que o tempo e a realidade se encarregariam de colocar em seus devidos lugares: quem à direita, ao centro, à esquerda.

Volta e meia imagino como será ter sido ser jovem, ou melhor, ser um jovem Fuentes, um jovem Mario Vargas, um jovem García Márquez naqueles anos de turbilhão. Uma vez perguntei isso a Fuentes. Estávamos em São Paulo, caminhávamos ao léu com Silvia Lemus, sua mulher, para cima e para baixo por aquelas paralelas da rua Augusta, e ele me contava coisas. Dizia assim: ‘É que a gente era muito jovem, e acreditávamos nas mesmas coisas, e tínhamos uma confiança enorme no futuro’. Insistia: sua amizade com García Márquez, que vinha de 1961, era a qualquer prova. E acabei sendo testemunha disso, dessa verdade.

E lembro que algum tempo depois, coisa de ano ou ano e meio, ao entrar num restaurante italiano em Buenos Aires, topei com ele e com Silvia. E ele, como sempre de uma elegância sem fim – e, atenção: estou me referindo à elegância como postura diante da vida –, quis continuar uma conversa que eu nem lembrava qual era.

Era a conversa sobre nossos respectivos anos jovens. Disse ele, lembrando de Vargas Llosa, de García Márquez, de Cortázar: ‘A vida segue, e às vezes, nos separa. Bom mesmo é quando você consegue discordar de tudo e fazer com que nada separe os afetos, a amizade’. Tentou isso a vida inteira. Às vezes – com Cortázar, com García Márquez –, conseguiu. Aliás, sem maiores esforços.

Quando me refiro a ele como um homem elegante, me refiro a um pensamento que conseguia ser ao mesmo tempo ágil e contido, que não se limitava às barreiras que muitas vezes nos impomos a nós mesmos. Acreditava no que acreditava.

Acreditava no futuro. No futuro da América Latina, no futuro no ser humano. Acreditava que, em algum momento desse nosso eterno recomeçar, nós, da América Latina, deixaríamos de recomeçar e começaríamos de verdade. E escrevia assim: acreditando. Não há dois livros dele que sejam iguais. Porque, em seu ofício, Carlos Fuentes era como na vida: sempre disposto a recomeçar, a reinventar. Sua obra é desigual, porque ao longo da vida somos desiguais. Escrevia cada livro como se fosse o primeiro. E por isso mesmo ele foi tantos, como tantos somos nós em nosso dia-a-dia.

A única coisa que se manteve sempre em cada palavra, cada frase que desenhou, foi a fé no futuro. Jamais acreditou em limites e fronteiras, quando escrevia. E nem quando vivia.

Qualquer um que tenha a palavra escrita como matéria prima, e a memória como guia dos tempos, saberá descobrir no autor de ‘A região mais transparente’, ou ‘A morte de Artemio Cruz’, ou de ‘Terra Nostra’, de ‘Gringo Viejo’, um eterno contemporâneo, um companheiro de viagem, um parceiro de sonhos e ousadias. E uma testemunha de desesperanças e esperanças, de tudo aquilo que poderíamos ter sido e que não fomos.

Fuentes dizia que, mais do que pela obra dos grandes historiadores, dos grandes sociólogos, dos grandes antropólogos – e ele foi amigo de vários dos grandes –, a verdadeira história nossa era escrita por escritores.

Lembro bem da vez em que ele disse que escrever literatura não era um ato natural: era como dizer que a realidade, não é suficiente. Que precisa de outra realidade, a da imaginação. E que isso era perigoso. Assim viveu, assim escreveu.

Muito mais que um grande escritor, a América perdeu um homem de seu tempo – de seus tempos. Que soube defender suas idéias com tamanha inteireza, com tamanha elegância, com tamanha firmeza, que mesmo os que tantas vezes discordaram dele poucas vezes deixaram de respeitá-lo.

Eu perdi um amigo distante. Que teve uma vida coalhada de dramas tenebrosos – a ele e a Silvia foi reservada a pior das dores de um ser humano, a de enterrar seus filhos – e conseguiu continuar caminhando. E sorrindo.

Lembro de Carlos Fuentes como alguém que não se deixou abater. Que não deixou de sorrir e de acreditar.

Certa vez, ele me disse que escrevia para continuar sendo. E, assim, foi.



sábado, 12 de maio de 2012

13 de maio e os discursos herdeiros da escravidão colonial...

O Brasil e a escravidão mercantil: nossa dívida com a África

Após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888. Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até hoje. O artigo é de Luiz Carlos Fabbri e Matilde Ribeiro.

1. O escravismo na formação do Brasil
O presente artigo tem por objetivo chamar a atenção sobre a atualidade política do regime escravista no Brasil e sobre a responsabilidade histórica do Estado brasileiro no tráfico transatlântico de escravos e na escravização de africanos ao arrepio da lei durante o Império. Com efeito, após a promulgação da lei de 1831, que proibia o tráfico de africanos para o Brasil e a escravização de africanos após esta data, o Brasil independente permitiu a continuidade do tráfico por navios negreiros portando bandeira brasileira e o desembarque e escravização de 760 mil africanos, segundo a estimativa de Alencastro (2010), e assegurou a impunidade de traficantes e senhores de escravos durante décadas, que continuaram a subjugar ilegalmente gerações de escravos até 1888.

Esta impunidade fundadora das elites imperiais tem reflexos na estrutura social e em formas de dominação política que prevalecem até os dias atuais. Assim como a ―invisibilidade‖ dos negros e das comunidades quilombolas constituiu um traço histórico marcante da realidade racial no Brasil, a invisibilidade do crime de lesa-humanidade praticado por traficantes brasileiros permanece grandemente ignorada até o presente. Nesses tempos em que se reconhece e se discute o direito à memória e à verdade acerca das violações de direitos humanos nos períodos ditatoriais recentes, a nação brasileira precisa tornar-se ciente de que o tráfico abjeto e o regime escravista foram em larga medida obra de nossos conterrâneos.

Hoje, esse salto evolutivo em nossa memória histórica é não somente necessário, mas emergente, graças à amplitude e lucidez da nova política africana desencadeada pelo Governo Lula, o ―mais africano dos presidentes, no dizer do ex-Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. No ano de 2011, comemoram-se dez anos da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Conexas de Intolerância, que teve lugar em Durban, na nova África do Sul, em agosto/setembro de 2001.

Em sua memorável resolução final, a Conferência reconheceu ―que a escravidão e o tráfico de escravos, incluindo o tráfico transatlântico de escravos, foram tragédias terríveis na história da humanidade, não apenas por sua barbárie abominável, mas também em termos de sua magnitude, natureza de organização e, especialmente, pela negação da essência das vítimas‖; reconheceu ainda que ―a escravidão e o tráfico de escravos são crimes contra a humanidade e assim devem sempre ser considerados, especialmente o tráfico transatlântico de escravos, estando entre as maiores manifestações e fontes de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata...

Durban foi um marco que galvanizou em todo mundo novos entendimentos e posturas, bem como movimentos sociais e políticas públicas sobre a problemática racial, particularmente com respeito aos afrodescendentes, como bem o ilustra, a declaração de 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes, em 2011 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Tudo isso é imensamente relevante em nosso país. Com efeito, segundo projeções do IPEA, devido à diferença nas taxas de fecundidade entre população branca e não branca, projeta-se para 2050 que ¾ da população brasileira estará constituída por negros e pardos. O Brasil, este povo majoritariamente afrodescendente, tem o direito de conhecer toda a verdade sobre sua história. Ao fazê-lo, deverá reconhecer sua dívida com respeito à África, independentemente do colonialismo europeu, do qual os dois continentes foram vítimas, mas devido à participação direta do Estado brasileiro, pós-Independência, na pilhagem da África.

2. A longa abolição da escravatura
Como é sabido, o Brasil foi o último país das Américas a libertar efetivamente seus escravos. No entanto, após a firma do tratado anglo-brasileiro de 1826, em troca do reconhecimento pelo Reino Unido da independência do Brasil, havia sido aprovada pela Câmara de Deputados do Império e promulgada em 1831, durante a Regência, uma lei que abolia o tráfico de escravos e criminalizava a escravização de africanos desembarcados no Brasil.

Apesar desta lei, que está na origem de expressão popular ―para inglês ver, os chamados negreiros brasileiros prosseguiram com o tráfico, servindo-se de uma rede de agentes instalados ao longo de toda a costa ocidental da África. Na verdade, com a abolição do trabalho escravo nos Estados Unidos, após a guerra da independência, o tráfico negreiro brasileiro ganhou inclusive um novo impulso, sem a concorrência de seus congêneres do norte.

Além do tráfico, a lei de 1831 proibia a própria escravização, não somente assegurando plena liberdade aos africanos introduzidos no país após esta data como considerando seqüestradores seus eventuais proprietários, sujeitos a sanções penais. Por reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade, o Código em vigor à época impunha aos infratores uma pena pecuniária e o reembolso das despesas com o reenvio do africano seqüestrado para qualquer porto da África.

Pouco depois, em 1845, o governo britânico decretou o Bill Aberdeen, que proibia o tráfico de escravos entre a Europa e as Américas e autorizava a Marinha a aprisionar navios negreiros, mesmo, no caso, quando navegassem em águas territoriais brasileiras, provocando pânico, segundo se diz, em traficantes e proprietários de escravos e de terras no Brasil. Para a Grã Bretanha, potência hegemônica no período, o tráfico tinha deixado de ser rentável, tornando-se um obstáculo às suas necessidades de expansão imperialista e de conquista de novos mercados, embora suas reais motivações se ocultassem sob o véu de razões filosóficas e humanitárias.

Apesar do forte sentimento anti-britânico gerado na alta sociedade imperial, o governo brasileiro viu-se obrigado a aprovar uma nova lei em 1850, dita lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico transatlântico para o Brasil e autorizava a apreensão dos negros ― boçais, que assim chamavam aos escravos recém-chegados que não dominavam o português. Mas, em contrapartida, a lei ignorava os escravos que haviam chegado ao país desde o tratado de 1826 e a lei de 1831, concedendo, de certa forma, um indulto aos seus infratores.

Com este gesto inaugural de impunidade, que viria a se incrustar a posteriori na sociedade brasileira, o governo brasileiro ―anistiava, a partir de 1850, os culpados pelo crime de seqüestro de africanos, fazendo vistas grossas ao crime correlato de escravização de pessoas livres. Com isso, os quase 800 mil africanos desembarcados até 1856 — e a totalidade de seus descendentes — continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888, ao mesmo tempo em que aumentava o tráfico interno em direção ao Sudeste e ao Sul, que ganhavam novo dinamismo econômico em detrimento do Nordeste. Assim, boa parte das últimas gerações de seres humanos escravizados no Brasil não era escrava de jure.

Ou seja, o tráfico de escravos e a escravização de africanos durante o Império não eram somente condenáveis no plano ético: eram atos ilegais cometidos pelas elites brasileiras, que permaneceram ocultos e impunes nas dobras da história dos vencedores. Paralelamente, a elevada concentração fundiária ganhava por esta via uma sobrevida e se consolidava, ao mesmo tempo em que se reforçavam os fundamentos da desigualdade racial no Brasil.

3. O Brasil e o tráfico negreiro
O tráfico negreiro com destino ao Brasil sempre teve uma dinâmica própria. Já desde o século XVII, era gerido a partir de portos brasileiros, isto é, os grandes traficantes que garantiam a reprodução do sistema escravista no país estavam sediados em Recife, Salvador e Rio de Janeiro, e não em Lisboa. A partir de 1831, o tráfico passou integralmente ao controle de traficantes brasileiros e seus agentes em portos da África Ocidental. Os escravos eram trazidos da África, acorrentados em navios negreiros, com a bandeira brasileira hasteada em seus mastros, causando profunda dor em patriotas como Castro Alves, que em seu poema Navio Negreiro, de 1868, dezoito anos após a lei Euzébio de Queiroz, bradava enfurecido:

“Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio. Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!...”

No Império, os traficantes brasileiros eram considerados empresários de sucesso e possuíam um status social elevado, armando embarcações com destino à África, servindo-se de uma rede de fornecedores e agentes comerciais em vários países e empregando muitas pessoas. Até 1831 estiveram entre os homens mais ricos do Império, com ligações estreitas com a Corte e representantes na Câmara de Deputados, além de contar com a conivência da polícia e das autoridades locais.

Somente após 1850, com a Lei Euzébio de Queiroz, eles começaram a ser qualificados como ―piratas, tendo muitas vezes que fugir para o exterior. No entanto, sob a proteção dos latifundiários, que como compradores de escravos jamais foram punidos, foram autorizados a voltar a viver no país já nos anos 1860 e incentivados a aplicar suas fortunas em outros negócios, como a agricultura. De certa forma, portanto, a participação de brasileiros no tráfico negreiro e as benesses que receberam fazem parte de um processo que ajudou a plasmar as elites brasileiras nas entranhas da sociedade escravocrata brasileira.

Segundo Alencastro, ―do total de cerca de 11 milhões de africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de cinco milhões) vieram para o território brasileiro num período de três séculos (1550-1856). Somente após 1808, com a chegada da família real ao Brasil, teriam desembarcado mais de 1,4 milhões de escravos, aproximadamente ⅓ do total de africanos escravizados que aportaram em terras brasileiras.

Grande parte da decantada prosperidade econômica do Brasil imperial se baseou nesses enormes contingentes de escravos desembarcados durante o século XIX. Para citar um único exemplo, à persistência da escravatura se deveu o arranque da cafeicultura no Vale do Ribeira em São Paulo, que converteu o Brasil no maior produtor mundial do produto e viabilizou ulteriormente a industrialização do país.

O tráfico negreiro e o trabalho escravo no Brasil contribuíram poderosamente para a acumulação mundial de capital e a expansão econômica européia, tornando rentável a colonização da África. Em contrapartida, a África ficou estagnada, com grande parte de sua população dizimada ou deportada e com suas sociedades desestruturadas, ao mesmo em que se acentuavam os conflitos internos e as migrações massivas.

O caso de Luanda, bem documentado, ilustra as mudanças provocadas pelo tráfico nas sociedades africanas. De 1770 a 1840, seu porto permaneceu como o mais importante exportador de escravos da África Ocidental, mantendo-se nesta posição com respeito ao Brasil, mesmo após a primeira lei de abolição em 1831. Ao longo deste período, a população não só declinou fortemente como sofreu perdas significativas em sua mão de obra produtiva, para atender à demanda brasileira. Este processo, no entanto, jamais ocorreu sem resistências, sendo freqüentes as fugas e revoltas de grupos de população vulnerável para o interior e a criação em meados do século XIX de ―quilombos ou ―motolos, que costumavam se armar e atacar a cidade de Luanda.

Esta rapina abjeta de seres humanos reduziu o potencial de desenvolvimento e maculou o ethos civilizatório do qual a África era portadora. Visto da perspectiva do continente africano, o tráfico de escravos não foi, portanto, uma empresa exclusiva de colonizadores europeus, mas também, e diretamente, de traficantes brasileiros atuando com o beneplácito do Estado brasileiro, quando o país já havia se tornado independente.

4. A dimensão política de nossa dívida com a África
Quando falamos da dívida brasileira com respeito à África, não devemos restringi-la ao incomensurável aporte dos africanos à construção da nação brasileira ou, muito menos, igualar o Brasil à potência colonizadora. A colonização africana resultou do expansionismo europeu e, desta perspectiva, tanto Brasil como África padecemos solidariamente dos seus males. Mais precisamente: o Brasil não colonizou a África e nós não temos porque assumir uma responsabilidade histórica que não nos cabe diretamente.

A verdadeira dívida brasileira está espelhada no tráfico negreiro realizado por traficantes brasileiros, principalmente ao longo do Império, atuando ilegal e impunemente, sob a égide do Estado brasileiro, ou seja, refere-se a um período histórico de pouco mais de meio século, num contexto em que o Brasil e outros países do continente americano já haviam deixado de ser colônias, tornando-se independentes.

Com efeito, foram traficantes brasileiros, em associação com grandes latifundiários, ou seja, as elites econômicas imperiais, que tomaram as rédeas do tráfico para o Brasil. Embora o país tenha evoluído desde então, os herdeiros dessas elites, e em alguns casos inclusive seus descendentes diretos, continuam tendo um enorme peso na vida política e na economia do país. A atualidade do tráfico negreiro reside, contudo, mais além das chagas sociais que nos legou, no desafio que nos coloca sobre o imperativo de ampliar continuamente nossos horizontes democráticos e construir uma sociedade que respeite a dignidade humana.

A discriminação e o racismo contra o negro no Brasil têm na escravatura sua matriz principal e fundadora. O tráfico necessitava uma justificativa no plano ideológico, que reduzisse o "homem de cor" a um ser inferior, degradado, próprio a ser tratado como uma coisa, uma mercadoria. O racismo cresceu à medida que se expandiu o tráfico negreiro e se incrustou nas instituições brasileiras principalmente a partir do Império. Mesmo depois de abolida a escravidão, o racismo prosseguiu e prosperou, como parte de uma cultura dominante abraçada pelo Brasil independente, a mesma que tornou possível e aceitável o saque colonial, o imperialismo e, nos dias atuais, o neocolonialismo. No caso do Brasil, esta cultura ainda dominante se traduz na submissão, com freqüência servil, aos interesses das classes dominantes do mundo dito civilizado.

O governo Lula inaugurou uma reviravolta nesta triste herança histórica, ao assumir a dívida histórica do Brasil com respeito à África, e ao reafirmar, a um só tempo, o peso da África e dos afrodescendentes na formação social brasileira. Contrariando as pretensões primeiro-mundistas das elites tradicionais, pediu publicamente perdão aos africanos e fez da África uma prioridade para a nova inserção internacional do Brasil, mediante uma visão de largo prazo dos interesses nacionais. Conferiu assim uma nova legitimidade e um cunho popular à política externa brasileira, valorizando o componente africano de nossa sociedade e a sua contribuição decisiva para a afirmação da nossa cultura. Para a África, o Brasil de governo Lula tornou-se um poderoso aliado na conquista de maior autonomia e integração, ajudando-a a superar a situação de dependência e marginalização em que se encontra.

No plano interno, contudo, nesses tempos em que se discute o direito à verdade e à memória na perspectiva dos oprimidos, cabe ainda desvendar o quanto a forma que assumiu o escravismo no Brasil determinou seu desenvolvimento ulterior e, em particular, porque o Brasil permanece até hoje como a única grande economia agro-exportadora que não realizou uma extensa reforma agrária.

O ocultamento da verdade com respeito ao papel de brasileiros no tráfico negreiro contribui também, certamente, à perpetuação do trabalho escravo no Brasil até o presente, esse crime de lesa-humanidade, considerado imprescritível pela Constituição de 1988.

Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, de 1995 até agosto de 2010, foram resgatados quase 38 mil escravos. Por sua vez, a Comissão Pastoral da Terra estima que cerca de 25 mil brasileiros se tornam escravos a cada ano, passando a viver em barracões de chão batido, separados de suas famílias e subjugados por dívidas impagáveis e crescentes. Segundo Monteiro Filho da ONG Repórter Brasil, que se especializou no trabalho escravo contemporâneo, ―os empregadores que utilizam mão de obra escrava são, na maioria das vezes, grandes latifundiários [...] quando não são congressistas, membros dos Legislativos estaduais ou do Poder Judiciário‖. Segundo este autor, ―a maioria dos casos de utilização de mão de obra escrava é registrada... nas fazendas de gado‖. O Brasil, como maior produtor e exportador de carne bovina do mundo, e grande produtor agrícola, tem no poderoso agronegócio a marca do trabalho escravo contemporâneo.

Assumir a responsabilidade histórica pela enorme dívida que temos com a África não é, portanto, uma atitude passadista, porém tem um claro rebatimento em componentes estruturais de nossa realidade como nação e em alguns de nossos principais desafios atuais. Esclarecer e discutir este tema representa um direito da sociedade brasileira e de sua maioria afrodescendente em especial. A política externa e a de cooperação com a África precisam incorporar continuamente esta dimensão como fundamento incontornável de enfoques inovadores e emancipatórios, baseados no respeito à dignidade e à liberdade humana.

5. Referências bibliográficas
Alencastro, L., O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.

Alencastro, L., O pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira, NOVOS ESTUDOS CEBRAP 87, julho 2010

Alencastro, L., L´Afrique nous est plus proche que certains pays d´Amérique Latine, in Le Monde, Hors Série, Brésil, un géant s´impose, 2010.Alonso A., O Abolicionista Cosmopolita. Joaquim Nabuco e a rede abolicionista transnacional; NOVOS ESTUDOS CEBRAP 88, novembro 2010

Amorim, C. A África tem sede de Brasil. Revista Carta Capital : 1o de Junho de 2011.

Bittar, E. e Almeida, G., Mini Código de Direitos Humanos. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2010, Brasília, 2010.

Curto, J. e Gervais, R., A dinâmica demográfica de Luanda
no contexto do tráfico de escravos do Atlântico Sul, 1781-1844, Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 85-138

Davidson, B. Mãe Negra. África: Os Anos de Provação. Sá da Costa, Lisboa, 1978

Eltis, D. , Behrendt, S. e Richardson, D. A Participação dos Países da Europa e das Américas no Tráfico Transatlântico de Escravos: Novas evidências, Afro-Ásia , 24 (2000), pp. 9-50

Ferreira. R., Escravidão e Revoltas de Escravos em Angola (1830-1860), Afro-Ásia, 21-2 (1998-1999), pp. 9-44

Ki-Zerbo,J., História da África Negra. Europa-América, Lisboa, 1972.

Lovejoy, P., The Volume of the Atlantic Slave Trade: A Synthesis, The Journal of African History, Vol. 23, No. 4. (1982), pp. 473-501.

Lovejoy, P., Identidade e a Miragem da Etnicidade. A Jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as Américas, Afro-Ásia, 27 (2002), pp. 9-39

Lula da Silva, L., Discurso: 17ª Cúpula da União Africana. Malabo, Guiné Equatorial. 30.06.2011

Maestri, M. O escravismo no Brasil. Atual – Coleção: Discutindo a Historia do Brasil, São Paulo, 1994

Marquese, R., A Dinâmica da Escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX; NOVOS ESTUDOS CEBRAP 74, março 2006

Mbaye, S. El Ethos esclavista y la economía africana. 2010, www.project-syndicate.org

Nkrumah, K., A África deve unir-se. Ulmeiro, Lisboa, 1977.

Pétré-Grenouilleau,O. A história da escravidão. Boitempo Editorial, São Paulo, 2009.

Raminelli, R. A história sob o monotrilho, 2001, Teoria e Debate nº 46, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.

Repórter Brasil. http://www.reporterbrasil.org.br
Vários autores, Dossiê Escravidão, Revista História Viva, ano VIII, nº 88, 2011, pp. 26-49, Ediouro Duetto Editorial Ltda.

Vários autores, Especial “A abolição em revista”, Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 3, nº 32, 2008, pp. 14-27, Sociedade de Amigos da Biblioteca Nacional.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

É pra rir ou pra chorar?


Folha lança site para receber informações de fontes anônimas


Folha lançou o programa Folhaleaks, um canal na Folha.com (folhaleaks.folha.com.br) para receber informações e documentos que possam merecer uma investigação jornalística.
Trata-se de uma ferramenta que permitirá ao leitor enviar sugestões, informações e documentos inéditos capazes de gerar reportagens investigativas elaboradas pela equipe do jornal.
O internauta poderá fazer isso de forma anônima --o jornal preservará o anonimato das fontes que não queiram se identificar, procedimento autorizado pela Constituição brasileira quando necessário para garantir o direito à informação.
"O Folhaleaks foi criado para ampliar o acesso da sociedade a informações relevantes, estreitando ainda mais a relação dos leitores com a produção de reportagens de interesse público", afirma Sérgio Dávila, editor-executivo da Folha.
...


Um dos resultados da inovadora empreitada:

sábado, 5 de maio de 2012

Aquecimento Global, (novo) Código Florestal, Veta Dilma! Construção e desconstrução de fórmulas discursivas num jogo político

    Não é novidade pra ninguém que a aprovação ou veto do texto no novo Código Florestal para o Brasil está em pauta.
    Conforme o texto foi sendo aprovado pelas instâncias políticas responsáveis, a pressão da população através das mídias sociais e atos de manifestação foi aumentando no sentido de que o veto ocorra.

Página "Veta Dilma" no Facebook: com mais de 7,268 "likes", usuários trocam informações e se organizam com posição contrária à aprovação do dito novo Código Florestal brasileiro.
Ministro Rebelo é recebido com protesto contra Novo Código Florestal.

   Toda essa movimentação cristalizou(?) os dizeres "Veta Dilma!" tal qual um S.O.S. ambientalista. Mas o assunto aqui, na verdade, não é levantar questões sobre o que há de positivo e/ou negativo no texto do novo Código Florestal (que, ao ser enunciado desta maneira ad infinitum, já parece naturalizar a polêmica e emergir a ideia de que ele é, de fato, O NOVO Código Florestal, não é?), mas trazer à luz uma curiosidade repentina, nesta altura do campeonato (faltando somente a aprovação da última instância política nacional, da presidentA), que algumas emissoras de TV aberta nacional tiveram sobre o conceito (antigo?) de "Aquecimento Global" (outra fórmula?). 

Observem:


'O aquecimento global é uma mentira', é o que afirma o Climatologista Ricardo Augusto - Programa do Jô (Rede Globo)




Aquecimento global: houve exagero, diz doutor - Jornal da Band (Grupo Bandeirantes)



    Alguns dizeres (valores) estão sendo colados ao sintagma "Aquecimento Global": teoria, hipótese; quando, não há muito tempo, ele era uma "verdade incoveniente"... Saber que a linguagem não é transparente pode ser um trunfo quando se tem em mente para onde ela deva refletir e refratar. E pra onde seria?

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Fica a questão...



Invasão ou privacidade?


Por Fernando Murad

O surgimento da internet derrubou barreiras e colocou a relação entre pessoas,­ marcas e empresas em um novo patamar. Como toda revolução, a digital também deixou arestas a serem aparadas. Uma delas é a coleta e utilização dos dados dos internautas e do histórico de navegação pelas páginas da web com fins comerciais. A questão coloca frente a frente o direito fundamental à privacidade e à intimidade e a possibilidade de melhorar a eficiência da comunicação online.

Polêmico, o assunto é tema de um projeto de lei nos Estados Unidos que pretende garantir o direito individual do consumidor de controlar que tipo de informação poderá ser coletada e a transparência quanto ao uso da informação obtida. A União Europeia já criou uma lei específica, embora muitos Estados-membros ainda não tenham transposto as novas diretrizes para a sua legislação nacional.

Já no Brasil, a política de privacidade aplicada pelas empresas pontocom será discutida em uma audiência pública na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, ainda sem data definida. O pedido foi feito pelo deputado Paulo Pimenta (PT/RS) a partir da unificação dos termos de compromisso do Google,­ em vigor desde 1o de março, que criou um regulamento único para substituir os mais de 60 conjuntos de regras existentes.

O poder de fogo que as informações coletadas dão às empresas é inquestionável. Segundo uma pesquisa da Blinq Media, de fevereiro de 2011, anúncios segmentados potencializam o compartilhamento da mensagem e as taxas de cliques. “As taxas de cliques para campanhas no Facebook foram de 7,5 vezes maiores para anúncios segmentados com características demográficas e informações de interesse do usuário do que para os anúncios não segmentados”, aponta Leonardo Longo, gerente de mídia digital da Ambev. Mas qual o limite para a obtenção e uso destas informações?

Internet
Felix Ximenes – diretor de comunicação e assuntos públicos do Google Brasil
“O controle deve estar nas mãos dos usuários. Cada um deveria poder modular o quanto e com quem quer compartilhar de acordo com seu desejo. O usuário tem o direito de saber que tipo de informação é coletada, assim como também as ferramentas para tirar esses dados do serviço no momento em que for conveniente. É importante frisar que todo site tem uma política de privacidade. E o usuário, por muitas vezes, simplesmente ignora que tipo de informação é coletada, por exemplo, quando ele cria um login para comentar uma matéria. O Google, em seu compromisso com a transparência com os usuários, unificou seus mais de 60 termos de privacidade, além de tornar o texto mais fácil de ser entendido para que o usuário possa realmente acompanhar e saber como seus dados são usados. E nesse texto, o usuário poderá ler e compreender que ele tem à sua disposição controles de privacidade que permitem escolher qual informação quer compartilhar. É preciso deixar claro também que o Google não compartilha informação com terceiros nem vende dados, como empresas de crédito e de assinaturas de serviço constantemente fazem. E, mais do que tudo isso, que os usuários têm a liberdade de retirar todos os seus dados do Google, usando o Data Liberation Front. Na internet, a concorrência está sempre a um clique de distância. Mais do que serviços relevantes, as empresas precisam permitir que o usuário escolha como seus dados serão usados. São eles que desenham o limite.”



Legislativo

Paulo Pimenta – deputado federal
“As empresas não podem se valer de práticas de obtenção de dados de forma obscura. A maioria dos usuários do Google, Facebook, Twitter, quando disponibiliza seus dados, jamais imagina que essas informações serão objeto de negócio no mercado publicitário. Não há uma política de esclarecimentos por parte dessas empresas. Essas relações precisam ser transparentes, de forma a permitir que o usuário que desejar receber anúncios dirigidos em suas caixas de e-mail, possa ter esse serviço, mas, por outro lado, preserve os usuários que não queiram que suas informações sejam comercializadas no mercado publicitário, ou nem sequer mapeadas ou rastreadas. O consumidor, ou internauta, precisa ser protegido, pois é a parte mais fraca da relação de consumo. Hoje, o que ocorre é que todas as informações, inclusive palavras-chave do e-mail, são rastreadas, para montagem de perfis, bancos de dados, e essas informações e rastros de navegação dos usuários, lançadas no mercado, geram bilhões. Entretanto, o argumento das empresas para vasculhar até e-mails dos usuários é de que poderão oferecer uma melhor navegação e oferecer produtos do interesse dos usuários. Mas escondem o grande comércio que existe com a aquisição dessas informações. Além disso, as empresas buscam também coibir ações judiciais de usuários, como o Google, por exemplo, que impede ações fora da Comarca de Santa Clara, na Califórnia. Esse tipo de restrição judicial também colide com as leis do nosso País.”


Direito

Guilherme Varella – advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
“Há uma lacuna normativa e regulatória com relação à proteção de dados no Brasil. Não existe uma lei específica estabelecendo princípios, normas e responsabilidades, tampouco uma autoridade competente para fiscalizá-lo e evitar abusos. Um cenário extremante complicado se levarmos em conta a potencialização da coleta e perfilação dos dados possibilitada pela internet e pelas novas ferramentas tecnológicas, utilizadas tanto pelas empresas quanto pelo poder público. Nesse quadro, o consumidor se torna ainda mais vulnerável, com poucas chances de ver concretizado seu direito fundamental à privacidade e à intimidade garantido pela Constituição. A ele resta a dependência das políticas de privacidade das empresas, ora inexistentes, ora em completo descompasso com outros diplomas legais, como o Código de Defesa do Consumidor. Não há compromisso das empresas com o tratamento qualitativo, responsável, seguro e autorizado dos dados. Isso fica evidente se atentarmos para a quantidade de publicidade massiva e direcionada, veiculada pelos meios eletrônicos diariamente. E traz consequências sérias, como a discriminação e o monitoramento no mercado de consumo. Nesse sentido, preocupa muito a grande concentração de serviços diferentes nas mãos do mesmo fornecedor, como é o caso de Google, Facebook e outras (poucas e) grandes empresas. O cruzamento dos dados pessoais é catalizado, torna-se inevitável e fatalmente trará danos aos consumidores.”

Anunciante

Leonardo Longo – gerente de mídia digital da Ambev
“O principal limitador é a falta de transparência na coleta dos dados, assim como a falta de segurança e confidencialidade com que são tratados. Esse receio referente à privacidade ocorre, muitas vezes, pelo fato de os veículos deixarem as informações ‘vazarem’, como quando o Facebook permitiu o acesso a informações pessoais de seus usuários devido a um bug. Na União Europeia, foi desenvolvida uma lei que visa dar aos consumidores mais informações sobre os dados armazenados sobre eles, sendo que, antes de ser solicitado o seu consentimento, os usuários devem ser informados sobre o uso dos dados recolhidos. Porém, em maio de 2011 a Comissão Europeia já considerava processar 24 países por ainda não terem transposto para o direito nacional as novas diretrizes. Para que isso ocorra bem no Brasil, haverá a necessidade de um esforço conjunto das empresas com o governo. Além da necessidade da transparência, é preciso reforçar que a utilização dos dados está longe de ser considerada uma invasão de privacidade, pois é a utilização com inteligência dos rastros deixados pelos usuários em um banco de dados anônimo e que contém uma diversidade enorme de variáveis. O intuito é a correta interpretação dessas variáveis, onde é possível agrupar em perfis os consumidores que navegam por determinada plataforma ou que visualizam determinado conteúdo na internet, entre outros. Se bem utilizados, o próprio internauta sairá ganhando com a utilização dos dados.”

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Debate, dissenso, ética - um caso corriqueiro do que circula sobre língua e linguagem

Um blog

Sírio Possenti
De Campinas (SP)

Um passarinho me contou que o Prof. Sacconi mantém um blog. Juro que não sabia. Na verdade, devo dizer que, junto com a preciosa informação, vinha um trecho de uma mensagem de um discípulo que citava trecho que uma diatribe do referido professor contra mim. Quer dizer, acho que era contra mim, embora meu nome não fosse citado. No final ele se dirige a um tal de Sr. Libanês. Como meu nome é "Sírio"...

Dei uma espiada no blog no final de semana. A cada dia, o professor posta um pequeno texto. Em geral, trata-se de correções de erros catados na imprensa (talvez alguns sejam respostas a consultas de leitores - tem gente pra tudo): regências, ortografia, concordância, adequação de emprego de artigo etc. Em geral, ele se diverte um pouco, rindo dos que erram. Típico.
Sua bronca foi publicada há dez ou quinze dias, foi postada de novo ontem e reproduzida hoje (quarta feira, 9/4/2008) "para que fique sempre atual", diz ele. O elegante e culto prof. Sacconi escreveu (mantenho a caixa alta):

ESPÍRITO DE PORCO EXISTE EM TODO LUGAR. MAS NUNCA É DE ESPERAR QUE SE ENCONTRE UM ESPÍRITO DE PORCO NUMA UNIVERSIDADE. E NUMA UNIVERSIDADE TÃO CONCEITUADA!!! CONCLUSÃO: ESPÍRITO DE PORCO EXISTE MESMO EM TODO LUGAR.

Fiquei impressionado com sua análise. Original, sobretudo.

Quase ao final, acrescenta: "Faltar à ética é que é fascismo, seus boçais! Os dois escreveram apenas dois opúsculos, um chamado Por que (não) ensinar gramática nas escolas, um lixo" (o título está errado: é "na escola"). "Seus boçais", no plural, se deve ao fato de que ele se vale de uma resenha crítica que Artur Virmond de Lacerda Neto escreveu contra o livro Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno. Se, pelo menos, a resenha fosse dele...

Em alguma parte do texto, defendendo sua exposição errada do conceito de fonema, alega a necessidade de ser didático. Afinal, sua gramática (de muito sucesso, segundo ele; deve saber do que fala, o barulhinho das moedas deve ser inconfundível) se dirige a alunos iniciantes e não aos de final de curso universitário.

Pelo menos, reconhece que o conceito exposto pode não estar correto, está lá apenas como efeito de seu didatismo (segundo ele, uma qualidade inata). Acho que discordo dele: para ser didático, deveria mostrar que é capaz de "passar" o conceito correto a seus leitores. Assumir que, para simplificar, ou ser compreendido, é lícito ensinar errado, é um grave problema ético (e profissional). Não sei se livros de biologia, para serem didáticos, expõem conceitos como o de célula erradamente. Espero que não. O MEC tem estado relativamente atento a erros conceituais, exceto no que se refere aos livros de português, pelo que tenho visto...

Mas o que eu queria mesmo saber é o que Sacconi considera ético. Uma hipótese: que um "colega" não critique outro. A Terra Magazine fornece um endereço para que os leitores possam falar com os colunistas. Houve quem me escrevesse perguntando por que os "gramáticos" não entram num acordo ou, alternativamente, por que brigam, discutem etc.

A partir de manifestações como estas, acho que posso compreender o que ele entende por ética: não ser discutido por "colegas". Seria ético, digamos, médicos e advogados não se pronunciarem sobre a conduta dos colegas: por uma questão de ética. Pois eu discordo: acho que ser ético obriga exatamente a discutir, a manifestar a discordância quando ela existe. O que fiz em relação a aspectos do trabalho de Sacconi publicado na ISTO É e em dois de seus livros foi ora elogiar suas posições, ora atacar suas análises.

Não consigo ver falta de ética nessa posição (ele pede conchavo, não ética). Essa atitude deveria ser normal: o debate intelectual é uma norma. Nos congressos e nas revistas científicas, é fácil ouvir ou ler lingüistas discordando de lingüistas (menos do que seria desejável, eu acho). Sociólogos e economistas "batem boca" saudavelmente pelos jornais (para os leitores é ótimo, porque não ficam expostos ao pensamento único). Num jornal que li hoje, por exemplo, o economista Delfim Neto desanca os economistas do Banco Central pelo que escreveram na ata do Copom. O país assiste a um debate claro e franco - às vezes um pouco mal educado, mas isso é parte do debate - sobre pesquisas com células-tronco. E não é que estejam os geneticistas de um lado e os padres de outro. Há também divisões entre geneticistas e entre religiosos. É ótimo, é saudável, e é absolutamente ético.

Quando a análise de um autor é atacada, a atitude normal seria que ele a defenda ou que reconheça que errou. Fácil, simples.

O que é que há de fascista na minha crítica? E por que, para me atacar, ataca-se - escorado em outro - o livro de um outro (que escreveu vários diga-se, e em vários campos)? Isso sim é difícil de entender... Até me pergunto de que adianta saber se a grafia é muçarela ou mussarela ou se seria melhor manter mozzarela, se, na hora de escrever sobre o queijo se escreve sobre tripa de porco.
Sobre meu opúsculo "Por que (não) ensinar gramática na escola": é claro que não adianta esperar que o prof. Sacconi o leia. Mas, se o lesse, veria que não é (não sou) contra o ensino de gramática na escola. Ele deve saber o que podem significar parênteses.

A rigor, quem é contra a gramática e seu ensino é ele: por que não é assim, com receitas e erros didáticos que ela será "dominada". Também não é verdade que só publiquei esse livro. Mas isso não é relevante, a não ser para mostrar que o prof. Sacconi pode não saber do que está falando.
Por alguma razão, Sacconi acha que tenho inveja de seu sucesso. Escreveu lá no blog dele que "Um sucesso incomoda muita gente; dois sucessos incomodam muita gente; três sucessos incomodam muita gente; muitos sucessos incomodam muito mais...". Mas por que eu teria inveja dele? Me dê uma razão, uma só!
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No dia 18 deste mês, vou a Manaus, a convite da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas, para fazer uma conferência sobre o "A língua na imprensa: um caso de mentalidade pré-copernicana". Talvez mencione o professor...

Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Lingüística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua e de Os limites do discurso.