quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sentenças e arrazoados: quem condena o quê

Vestígios de civilização

A fundamentação do juiz que inocentou um usuário de maconha vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.


Marcio Sotelo Felippe *
Boletim Carta Maior  Maj. Will Cox/ Georgia Army National Guard

Em "Futuros Amantes", Chico Buarque imagina que daqui a milênios, quando o Rio for uma cidade submersa, escafandristas virão explorar os segredos da sua amante, sua casa, seu quarto, suas coisas, sua alma. E que sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização.
 
Imaginemos que sábios, daqui a milênios, encontrem, entre vestígios de antiga civilização, a sentença de Rubens Casara, da 43ª. Vara Criminal do Rio de Janeiro. Casara absolveu um homem, preso em flagrante, que mantia em sua casa plantio da erva da qual se extrai a maconha.
 
Outros milênios a partir daí correrão para que os sábios do futuro expliquem esse fragmento de estranha civilização. Porque descobrirão que havia duas drogas muito populares.
 
Uma era depressora do Sistema Nervoso Central, agindo ainda sobre fígado, coração, vasos e parede do estômago. Com o aumento da concentração da droga no organismo a pessoa apresentava diminuição da resposta aos estímulos, fala pastosa, dificuldade para andar. Em concentrações mais altas o indivíduo entrava em coma e podia morrer. Dependendo da quantidade ingerida, os efeitos em geral eram diminuição da capacidade de discernimento, entorpecimento fisiológico, redução da capacidade de tomar decisões racionais, ansiedade, depressão, parada respiratória e morte. Entre os consumidores dessa droga, cerca de 11% se tornavam dependentes. Estava claramente associada a doenças graves, como câncer, cirrose hepática, etc.
 
Outra provocava euforia, sonolência, perda de noção do tempo e espaço, perda de coordenação motora, de equilíbrio, taquicardia, perda temporária de inteligência. Tal como a outra, provocava dependência em aproximadamente 11% dos usuários e estava associada a doenças graves, câncer, problemas respiratórios, etc.
 
A primeira droga era lícita, estimulada pelo meio social, propagandeada nos órgãos de comunicação, tinha experts com grande prestígio internacional, admirados pela técnica e refinamento de seus saberes.
 
A segunda era ilícita. Quem usava ou comercializava podia ter sua vida, ou parte dela, destruída pelo Estado, que sobre eles fazia desabar toda a sua feroz capacidade repressiva. Em todo o mundo, milhares de pessoas eram presas pelo seu uso ou comercialização. O comércio ilegal gerava uma rede de delinquência, e por vezes organizações poderosas, praticamente subestados, nas quais tudo se podia, toda sorte de violências, assassinatos, torturas. Recursos imensos eram desperdiçados pelos Estados para combater essa droga, drenando riqueza que poderia ser usada para melhorar a condição de vida das pessoas que, lembrarão os sábios do futuro, viviam em estruturas sociais iníquas, em que pouquíssimos concentravam praticamente toda riqueza e bilhões viviam as agruras da fome e de uma vida miserável e sem esperança.
 
Competirá em vão aos sábios do futuro explicar essa loucura social. Muitas torpezas e muita estupidez histórica podem ter uma lógica interna, absolutamente insustentável do ponto de vista moral, mas uma explicação. Pode ser deslindada, por exemplo, a estupidez de queimar mulheres como bruxas na Idade Média como manutenção e reprodução da estrutura de poder da Igreja Católica. Podem ser deslindados os motivos asquerosos pelos quais judeus foram massacrados ao longo da História.  Mas no caso das duas drogas cujos efeitos descrevi, a primeira o álcool, a segunda a maconha, os sábios do futuro poderão concluir que os vestígios desta estranha civilização indicavam que foi o tempo da mera esquizofrenia social, ou seja, ausência de racionalidade que decorre da dissociação com o real.
 
A sentença do juiz Rubens Casara é antológica porque em poucas palavras, com uma clareza solar, de um lado faz emergir todos os problemas filosóficos, sociais, morais e jurídicos que dizem respeito à questão das drogas, e de outro o respeito a garantias e direitos fundamentais.
 
A droga é uma questão de saúde pública, não de polícia. Punir um adicto ou impor qualquer sanção ou restrição de direito a ele é o mesmo que punir quem sofre de, digamos, enxaqueca. A adição é doença. E quem consegue usar recreativamente maconha ou qualquer outra droga sem se tornar adicto deve ser tratado como   todos nós outros que ingerimos álcool social e recreativamente.
 
O uso é uma decisão do indivíduo. Sendo uma decisão do indivíduo, a licitude de sua obtenção deve ser, por inexorável decorrência lógica, admitida, com o que milhares de pessoas deixarão de ter suas vidas destruídas pelo envolvimento com a proibição indevidamente decretada pelo Estado. E estas pessoas são, quase sempre, os pequenos, homens e mulheres pobres sem qualquer esperança de uma vida melhor que, por isso, se arriscam a perder parte de suas vidas em cadeias ou, às vezes, a própria vida.
 
Afora esses aspectos mais gerais, filosóficos, a sentença do juiz Casara demole práticas perversas da persecução penal às drogas. Por exemplo, a associação automática, a priori, entre quantidade e tráfico. A decisão faz prevalecer a presunção de inocência, que inexiste em regra na prática policial e judiciária nesses casos. Examinando as provas com lógica implacável, conclui que as mudas, não obstante a quantidade, somente poderiam ser para uso próprio. Na esmagadora maioria dos casos policiais, promotores e juízes agem como se houvesse um software em suas mentes. Quantidade x, enter, condenação por tráfico. No julgamento em curso no STF um ministro chegou a propor a exata quantidade de droga que seria suficiente para caracterizar o tráfico. Sim, isto facilitaria muito. Juízes não precisariam mais usar a faculdade de raciocinar e colher provas e também dispensar esse chato princípio da presunção de inocência.
 
Ressalto, por fim, a parte final da fundamentação do juiz Casara porque vale por aulas e aulas sobre aplicação e caráter vinculante dos princípios jurídicos.   Tudo que precisa ser dito sobre esse aspecto nela está: “ ... viola o princípio da proporcionalidade punir com pena privativa de liberdade um indivíduo que, para fugir dos riscos gerados tanto pela ‘indústria da ilegalidade’ quanto pela opção política que aposta no modelo bélico de enfrentamento de um problema que é, na realidade, de saúde pública, opta por cultivar a substância que pretende usar”.
 
Os sábios do futuro ficarão perplexos com esta civilização ensandecida, mas uma coisa não poderão deixar de dizer:  investigando os vestígios de uma estranha civilização, havia numa cidade chamada Rio de Janeiro um juiz.

*Marcio Sotelo Felippe é advogado e jurista. Exerceu o cargo de procurador geral do Estado de São Paulo de 1995 a 2000

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O feici e seu poder tentacular...

18/12/2015 - Copyleft
Carta Maior 

O Whatsapp caiu e a culpa é do Facebook.

A responsabilidade originária deste dano é da postura arrogante e unilateral desta empresa que dissimuladamente alega operar pelo bem comum


Pedro Ekman* reprodução

O Brasil amanheceu nesta quinta-feira sem trocas de mensagens pelo Whatsapp e a culpa é do Facebook. Para quem está chegando agora, vale avisar que o Grupo Facebook de Mark Zuckerberg é também dono dos aplicativos Whatsapp e Instagram. A justiça determinou a suspensão por 48 horas do Whatsapp no Brasil por descumprimento de ordem judicial que determinava o acesso a dados do aplicativo de pessoas que estavam sendo investigadas.


Zuckerberg se disse “chocado que os esforços em proteger dados pessoais poderiam resultar na punição de todos os usuários brasileiros”. Balela, Zuckerberg não está preocupado com a privacidade dos brasileiros, ele manipula e vende todas as informações que coleta de absolutamente toda a população ao redor do mundo, mesmo aquelas privadas que não era para ninguém mais saber a não ser você e o destinatário da sua mensagem. Mandar conteúdo íntimo ou particular por foto, texto ou som via Whatsapp, Instagram ou Facebook é o mesmo que tirar a roupa em um Shopping Center pensando que está entre as quatro paredes do quarto. Isso não é nem de longe estar preocupado com a privacidade da população.


A decisão judicial de suspensão também não é razoável. Retirar do ar o serviço de comunicação de toda a população como punição a um fato restrito a poucos usuários tampouco parece respeitar o princípio de proporcionalidade garantido na Constituição Federal brasileira. Seria o mesmo que mandar fechar todas as agências dos Correios por causa de um punhado de cartas. Ou retirar o serviço de telefonia do ar se a operadora se negar a instalar uma escuta definida por ordem judicial.


Mesmo a medida desproporcional da justiça brasileira, pelo menos em parte, também é culpa do Facebook. A conduta arrogante da empresa americana em se recusar a cumprir ordem judicial no Brasil praticamente leva o litígio a uma estratégia que possibilite algum efeito concreto. Antes de determinar a suspensão do serviço, a justiça já tinha determinado multa diária de 100 mil reais que chegou a somar 12 milhões de reais. A postura do Facebook foi a mesma: “Não devemos satisfação a vocês, nos submetemos apenas às leis dos Estados Unidos”.


Muitos vieram a público bradar que o Whatsapp só teria saído do ar por que no Brasil aprovamos o Marco Civil da Internet que permite à justiça fazer esse tipo de coisa. Não é verdade, mesmo antes da aprovação desta lei, um juiz já chegou a determinar a retirada de todo o YouTube do ar a pedido da Daniela Cicarelli que queria a retirada de um único vídeo privado. É o mesmo caso de se tentar eliminar o mensageiro por causa da mensagem. Um erro grosseiro que não acontecia no mundo analógico, mas que pode se tornar uma prática no ambiente digital por puro desconhecimento do tema pelo sistema judiciário ou por simples abuso de poder.


Responsabilizar a ferramenta pelo mal uso que se faz dela é algo torpe. Alguns podem dizer que a criptografia é uma ferramenta utilizada por quem quer se esconder para cometer crimes. Pode até ser, mas é essa mesma criptografia que protege o voto eletrônico, a sua conta no banco e as denúncias de corrupção do seu político preterido. Não se proíbe o uso de facas, elas podem ser usadas para machucar alguém e para passar manteiga no pão.


Além de devassar a privacidade de todos os cidadãos, o Facebook também comete outras ilegalidades diariamente. Os planos de celular com uso “gratuito” do Whatsapp e Facebook são uma afronta direta à lei brasileira que proíbe a discriminação de conteúdos na rede. O delito cometido pelo Facebook e operadoras de telefonia estabelece um pedágio seletivo na internet. Da mesma forma, não temos que suspender a atividade das plataformas, mas sim suspender os planos de venda discriminatórios.

Mais de um milhão e meio de usuários brasileiros descobriram o Telegram nas 12 horas em que vigorou a suspensão do Whatsapp. O Telegram tem garantias mais consistentes à privacidade do usuário, como serviço de mensagem criptografada com autodestruição automática e de ser mais divertido disponibilizando figurinhas (stickers) que podem ser produzidas pelos próprios usuários.  E como ele outros aplicativos de fato preocupados com a privacidade do usuário estão à disposição do público há muito tempo, tais como o Actor https://actor.im ou o Signal https://whispersystems.org/ recomendado por Edward Snowden.


- E se esses aplicativos são melhores por que nunca usamos?
- Por que ninguém tem.
- E por que ninguém tem?
- Por que o zapzap não desconta da franquia.


E assim seguimos em um ciclo vicioso que sufoca a competitividade comercial na rede aniquilando a inovação. Por isso é tão importante que se mantenha a rede neutra, sem discriminação econômica ou de qualquer natureza de um aplicativo sobre outros.


A medida adotada pela justiça foi desproporcional e não beneficia a sociedade penalizada pela conduta comercial da empresa. A responsabilidade originária deste dano é da postura arrogante e unilateral desta empresa que dissimuladamente alega operar pelo bem comum ao defender seus interesses privados. O debate que se abriu na sociedade e a descoberta de novos aplicativos e maneiras de consumo mais seguras e conscientes é o grande saldo positivo que tivemos nesse episódio e o custo disto para o grupo que quer tornar a internet um domínio privado pode ter saído mais caro do que os 12 milhões inicialmente cobrados de Zuckerberg.

*Pedro Ekman é do Conselho do Intervozes

Um projeto cinematográfico de documentação do atual período - Moore

17/12/2015 - Copyleft

Michael Moore: o que roubar na próxima invasão?

O objetivo desta nova invasão dos EUA não seria para se apossar do petróleo, mas das ideias e soluções político-sociais encontradas por outros países


Rui Martins - Correio do Brasil

reproduçãoO maior crítico e inimigo da estrutura político-militar americana, o cineasta documentarista e escritor Michael Moore, estará em fevereiro no Festival de Cinema de Berlim, com seu novo filme Onde a Próxima Invasão?,já exibido no Festival de Toronto e com estréia nos EUA na véspera do Natal.

Desta vez, o sistema americano quer limitar a penetração do filme entre os jovens, classificando-o como permitido apenas a maiores de 17 anos, alegando algumas cenas de drogas e uns nus naturistas, mas na verdade criando uma nova categoria – a da pornografia política.

Para Michael Moore, os EUA são um país belicoso em permanente estado de guerra, principal responsável pela situação atual no Oriente Médio, decorrente da invasão do Iraque, justificada com mentiras. Natural, por isso, se esperar uma nova invasão para acionar a indústria armamentista americana e se apropriar de alguma riqueza.

Entretanto, o objetivo desta nova invasão não seria para se apossar do petróleo de algum país, porém – e aqui entra a ironia do provocador Moore – das idéias e soluções político-sociais encontradas por outros países e superiores às aplicadas pelo liberalismo capitalista dentro dos Estados Unidos.

Entre elas estão o sistema de saúde e previdenciário dos franceses ; a política de legalização de certas drogas pelos portugueses ; o comportamento natural de muitos europeus com relação aos seus corpos nos campos naturistas de nudismo; as merendas escolares nas escolas francesas; as longas férias concedidas aos operários italianos; o melhor sistema educacional dos finlandeses; e a maneira como foram processados e presos os banqueiros islandeses envolvidos na falência do país.

Por que não roubar tudo isso desses países e fincar uma bandeirinha americana no lugar?

O sucesso de Onde a Próxima Invasão? vai depender da dose de humor aplicada por Michael Moore, já premiado com Palma de Ouro em Cannes e com Oscars nos Estados.
Seus filmes mais conhecidos – Tiros em Columbine e Fahrenheit 9/11.

Rui Martins, correspondente em Genebra, estará em Berlim, do 10 ao 21 de fevereiro, convidado pelo 66. Festival Internacional de Cinema.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Mídia, mídias, sistema midiático

Países do Brics partilham sistema de mídia que defende interesses da elite, diz pesquisadora





Raquel Paiva, coordenadora de estudo que mapeia a mídia no bloco emergente e professora da UFRJ, aponta similaridades do jornalismo nos cinco países
Raquel Paiva é a pesquisadora responsável por coordenar o núcleo brasileiro de pesquisa que faz um mapeamento da mídia nos Brics. Em entrevista a Opera Mundi, a professora de comunicação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) apresentou os primeiros resultados do estudo comparativo do Brasil com Rússia, Índia, China e África do Sul.

Leia também: Mídia deve ser discutida da mesma forma que política e economia, dizem especialistas dos Brics

Reprodução/UFRJ

Raquel Paiva é professora titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)


A perspectiva inicial é que os problemas de concentração e os interesse econômicos e políticos a frente dos veículos de comunicação é uma questão em comum entre os países do bloco emergente.Na esteira do crescimento dos Brics, Raquel acredita no esforço conjunto de grupos de pesquisa, profissionais e sociedade civil para que o bloco emergente possa também representar um novo modelo comunicacional contra-hegemônico.

Opera Mundi: Por que é importante discutir mídia e comunicação social na perspectiva dos Brics? O que há em comum entre os países que compõe o bloco em termos de comunicação?
Raquel Paiva: Acredito que da mesma maneira que se discutem outras variáveis com relação a este bloco que se iniciou e se consolidou a partir principalmente do viés econômico, outras forças também passam a ser elencadas como passíveis de discussão. Até mesmo questões que estejam de fato relacionadas à vida de suas populações e à solução de problemas seculares. A comunicação social em todas as abordagens é fundamental neste contexto.

De comum entre os países que compõe este bloco acho que há principalmente o sofrimento da maior parte da população, a existência de castas e elites transnacionais, um sistema de mídia que defende os interesses dessa elite politica e econômica, concentração de veículos, uma legislação restritiva de produção e um avanço tecnológico que pode interferir de maneira decisiva nessa concentração dos centros produtores de informação e entretenimento.

OM: Enquanto bloco emergente, você acredita que os países que integram os Brics podem apresentar contribuições para pensar a comunicação para além de uma lógica hegemônica? Ou seja, é possível pensar em novas formas de produção que nascem na esteira de uma nova organização mundial?
RP: Bom acho que sim, é possível idealizar e mesmo gestar novas formas de comunicação. Mas até agora constatamos a presença do mesmo modelo e com uma censura forte que se não é politica, mas é econômica. Não sei exatamente se estas novas possibilidades discursivas surgiriam a partir de um novo bloco governamental, mas acredito firmemente que grupos de pesquisa, de professores, de jornalistas desse bloco capazes de dialogar podem sim gestar novas possibilidades informacionais e comunicacionais.


Ignacio Ramonet: Maior batalha da esquerda na América Latina é contra 'golpe midiático'

México: Após assassinato de fotógrafo na capital, cresce medo entre jornalistas no país

Polícia diz que homem que baleou repórter e cinegrafista nos EUA atirou em si mesmo, mas está em 'condição crítica'

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Novas mídias articuladas formarão a próxima grande mídia


  

9.12.2015 - 9:36  

debate Mídia de Massas e Massas de Mídia trouxe para o Emergências a apresentação de destacadas experiências de comunicação alternativas à tradicional grande mídia. O debate foi realizado na tarde dessa terça-feira (8) no palco principal da Fundição Progresso, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro (RJ).

A mesa formada majoritariamente por mulheres foi mediada pela secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC), Ivana Bentes, que definiu a proposta do debate como uma pequena mostra de projetos latino-americanos que resolveram não esperar o fim dos oligopólios midiáticos por meio de regulamentação legal, passando à experimentação em verdadeiros "laboratórios de novas narrativas". Nas palavras da secretária, "a articulação dessas novas mídias é a nova grande mídia".

Debate Mídia de Massas e Massas de Mídia trouxe para o Emergências a destacadas experiências      de comunicação alternativas à tradicional grande mídia (Foto: Rafael Vilela)
A experiência dos Jornalistas Livres foi apresentada pela jornalista Laura Capriglione. Por meio de um detalhado relato sobre as recentes ocupações de escolas públicas de São Paulo e sobre a cobertura realizada pelos próprios estudantes, por seu coletivo e pela mídia tradicional dessas mobilizações, ela reafirmou a necessidade e a possibilidade concreta de se criarem narrativas contra-hegemônicas com alcance massivo.

Descontentes com o tratamento truculento que recebiam do governo e da imprensa, que os tratavam como vândalos, os estudantes organizaram em todas as escolas ocupadas uma página no Facebook e oficinas para aprenderem a fotografar e a conceber, filmar e editar vídeos, por exemplo. Tudo com ajuda de vários outros coletivos, entre eles os Jornalistas Livres, que conseguiram gravar e publicar falas do então secretário de Educação de São Paulo revelando sua tática de guerra contra os jovens. 

"Descobrimos que eles [Governo de São Paulo] iriam fazer uma reunião com os diretores para preparar essa guerra e esse foi exatamente o termo que eles usaram. E isso foi gravado. E imediatamente os jovens foram pra rua para falar: se quer guerra terá, se quer paz quero em dobro", contou Capriglione.

#YoSoy132

Vinda do México, Ana Rolón contou a história do movimento estudantil #YoSoy132, nascido de um protesto feito por 131 estudantes da Universidade Ibero-americana durante uma visita do então candidato à presidência do México Enrique Piñera Nieto, acusado de violar os direitos humanos. Hostilizados pelo candidato e chamados de "manifestantes pagos", os estudantes publicaram um vídeo na internet sobre o ocorrido que, em menos de uma hora, obteve mais de 1 milhão de visualizações.   

"Aí percebemos a internet como uma ferramenta poderosa para democratizar a comunicação. Por suas qualidades rizomática e democrática, ela apresentava novas soluções para responder às nossas novas necessidades", relatou. 

Com a viralização do vídeo, espalhou-se pela rede também a hashtag #YoSoy132 em apoio aos estudantes. Daí nasceria o movimento que, durante as eleições, conseguiu realizar um debate com os candidatos a presidente transmitido ao vivo via internet e sem a participação de Piñera, que se negou a comparecer. Esse vídeo hoje possui quase 1,5 milhão de visualizações no canal do movimento no Youtube. Passado o pleito, os estudantes transformaram seus canais digitaisem espaços de difusão de conteúdos relacionados a pautas de movimentos sociais.

Também do México e com inspiração no movimento Zapatista, o espaço de comunicaçãoDesinformémonos foi apresentado pela jornalista Gloria Munhoz como uma tentativa de combater a criminalização de lutas sociais e, ao mesmo tempo, refletir criticamente sobre elas. "O conceito é desaprender um monte de coisas que nos ensinaram e não ter só uma informação complementar, mas outra informação, construída de baixo para cima", definiu Munhoz, agregando que atualmente os conteúdos postados por eles nas redes sociais tem em média 35 milhões de interações por semana.

Uma experiência similar, mas concebida no Uruguai, foi contada por Lucas Silva, um dos integrantes do jornal-cooperativa La Diária. "A proposta é ampliar a agenda informativa, de maneira contextualizada e enfocando temas como gênero, direitos humanos, economia solidaria e outros", destacou.

O jornalista colombiano Holman Morris falou sobre sua experiência como diretor da TV pública da cidade de Bogotá. Criador do programa de TV Contravia, que mostrava as violações aos direitos humanos "em uma época em que o governo de Alvaro Uribe dizia que na Colômbia não havia conflito armado, nem desaparecidos", Morris afirmou ter sido preso arbitrariamente duas vezes e exilado por retaliação ao seu trabalho. 

O jornalista voltou a seu país convidado para assumir o cargo na TV pública de Bogotá com a missão de coloca-la a serviço dos direitos humanos e de uma cultura de paz. "Vimos que não basta ter um canal. O importante era fazer diferente do tradicional, aprender como relatar, projetar e qual era a agenda própria desse canal. Então, entregamos o canal às pessoas: aos movimentos jovens, Hip Hop, LGBT, ambientalistas. Uma TV de muitas caras e cores", contou.

Já o ator e humorista brasileiro Gregório Duduvier pouco falou sobre seu projeto Porta dos Fundos, dedicando seu tempo às críticas sobre as relações promíscuas que tanto a política como os meios de comunicação mantêm com o grande capital, o que limitaria o potencial transformador de ambos. Porém, todas as ações de caráter conservador por eles praticadas são justificadas em nome "do suposto gosto conservador do povo", disse ele.  

"Sempre tive que lidar com críticas ao humor que faço com frases do tipo ‘o povo não gosta disso', com base em pesquisas que ninguém nunca viu. Cansei de ouvir isso quando era contratado da Globo e no começo do Porta dos Fundos também. E o humor da TV aberta são as mulheres objetificadas, os homens desmunhecando, o caipira, o negro, são sempre as minorias. Basicamente, eles batem nas mesmas pessoas que a polícia", ironizou.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

O que a megamídia não diz sobre o movimento dos alunos

02/12/2015 - Copyleft
Fonte: Boletim Carta Maior 

A revolta dos adolescentes vista por dentro

Quem são, o que querem e como se organizam os garotos e garotas que estão fazendo São Paulo pensar.


Katya Braghini, Paula Maria de Assis, Marianna Braghini Deus Deu, Andrezza Silva Cameski - Outras Palavras
  EBC

Estudar xingamentos não é difícil. O xingamento é anúncio simples, drástico, um slogan que tenta demarcar rispidamente um ponto de vista, uma forma de ver o mundo, uma representação construída sobre pessoas, coisas, instituições. Um xingamento corta a paisagem e tenta ser a verdade. Recruta as nossas faculdades de atenção.

Chamar alunos que ocupam escolas de “parasitas sociais”, porque eles simplesmente não aceitam o novo plano de governo do estado de São Paulo chamado “reorganização escolar” não é só injusto, já que eles estão em conformidade com o direito que lhes pertence. Representa também, muito claramente, o repúdio de uma parcela da sociedade paulista diante dos princípios da dignidade humana estabelecidos em um estado democrático de direito; aquilo que delimita as regras de exercício de poder do estado diante de sua própria administração.

Atentos à ordem e à harmonia social como expressão máxima da sensibilidade política, ignoram a contradição e as lutas sociais como condição essencial do sistema político que os rege; espelham o seu desconhecimento que é distribuído como verdade absoluta; regem o absurdo como uma contra-educação.

A ofensa aos alunos é como a “escola do mundo do avesso”, mundo de pernas para o ar, que na poética de Eduardo Galeano nos ensina a “padecer a realidade ao invés de transformá-la, a esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo”. Nessa escola, o que vale é o crime das aulas de impotência, amnésia e resignação. Ou, como diz o próprio autor, se Alice voltasse, veria pela janela o mundo de cabeça para baixo.

Porque na escola de Galeano, alunos têm cursos de intolerância, de injustiça, machismo, racismo. Têm aulas de impunidade e de opressão. Esse espaço cruel, de mundo virado, mostra-se como o mais democrático dos locais, porque está em todos os lugares. Trata-se da aceitação geral de que pessoas são mercadorias e, desta forma, são governadas.

Essa sociedade é um cenário pessimista. Ataca alunos que defendem escolas. No livro, a esperança surge pelo combate de grupos contrários a essa lógica que repete o xingamento, jogando o certo no errado e fazendo do errado o certo.

No dia 14/11/2015, a página do G1 descrevia o orgulho de alguns pais diante da reação dos filhos que tentam impedir o fechamento de suas escolas. O Sr. Rabsaque Moreira Cruz, pai de aluno da EE Fernão Dias Paes – uma das primeiras escolas ocupadas – dizia-se orgulhoso, julgando que a “semente da mudança” na educação do estado seria feita pelos próprios alunos do sistema público.

Entretanto, os comentários das notícias cortam essa alegria, dizendo que pais e alunos “são massa de manobra de uma esquerda invasora das escolas”; “alunos deveriam estudar em vez de ocupar o tempo vagabundando em invasões”; que a culpa é da “maldita inclusão digital” que permite o contato dos jovens para fazer “política ordinária”; chamam a polícia e pedem “borrachon nos caras”; pedem “São Paulo para os paulistas” em alusão ao número de migrantes nas instituições; ofendem alunos chamando-os de “parasitas sociais” etc..

Xingar nada esclarece sobre quem são esses jovens e suas famílias, e conta menos ainda sobre o porquê de se opor a uma ideia que é divulgada como certa e racional. Afinal, quem são eles? O que querem? O que os mobiliza?


Breve panorama da situação paulista – Informações e dados

“Reestruturar” a rede de ensino significa separar os estudantes por idade e, para isso, fechar algumas unidades escolares tidas como ociosas. Cada escola, segundo a proposta, deverá ter exclusivamente um dos ciclos de ensino: Fundamental I, Fundamental II, ou Ensino Médio.

De acordo com o Censo Escolar MEC/INEP (2013), São Paulo com a sua rede de ensino mantinha 5.585 escolas. Após a divulgação do plano de reestruturação, as escolas seriam redimensionadas da seguinte maneira: 1.443 escolas de ciclo único; 3.186 escolas com dois ciclos e 479 escolas com três ciclos.

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP) anunciou também que a reorganização do ensino escolar afetaria 94 escolas que passariam a outras funções: 25 na capital, 20 na região metropolitana, 45 no interior e 4 na Baixada Santista. Outras 28 escolas estão com destino incerto. Desse total, indicam que 66 prédios poderão abrigar unidades de ensino técnico ou seriam transformadas em creches e escolas municipais.

Ao todo, o plano pretende “liberar” 1,8% das 5.147 escolas do estado. No total, 1.464 unidades estão envolvidas na reconfiguração, mudando o número de ciclos de ensino que serão oferecidos. A SEE-SP divulga que 311 mil alunos serão remanejados, do total de 3,8 milhões de matriculados. A mudança atinge ainda 74 mil professores.

sábado, 28 de novembro de 2015

Negritude e comunicação social

O novembro negro e os meios de comunicação

Escrito por: Alex Hercog
Fonte: Carrta Capital/Intervozes, via FNDC

É preciso disputar os lugares de produção de sentidos, como a mídia, para acabar com o racismo

Em uma entrevista, Cartola afirmou que uma de suas principais canções, “O sol nascerá”, foi gravada sem que ele soubesse, pois um atravessador havia vendido a composição. Ela, então, foi trabalhada por mais de 25 artistas. Cartola, cujo avô foi escravizado, morreu como nasceu: pobre.
O sambista carioca era torcedor do Fluminense. Dois anos antes de Cartola escolher o tricolor como time do coração, um episódio marcou a história do clube: o jogador Carlos Alberto foi provocado pela torcida do América, que o chamou de “pó de arroz”. Negro, o atacante tricolor sempre passava pó no rosto antes das partidas para dar uma esbranquiçada. Até hoje, o time adota o pó de arroz como símbolo.
dez-mandamentos
Bastidores da gravação da novela Os Dez Mandamentos, da Tv Record
Passado quase um século, ainda tem gente no Brasil que se pinta para mudar a cor da pele. É o caso dos atores da emissora da Igreja Universal. Na novela de sucesso “Os Dez Mandamentos”, boa parte da história se passa no norte da África e os personagens não são majoritariamente brancos. Os atores, contudo, são. Em vez de contratar atores afrodescendentes, a escolha da Record foi de dar os principais papéis para atores brancos, que são tornados “morenos” com quilos de maquiagem.
Na TV da família Marinho, “somos todos Maju”. Mas não negros. Os apresentadores e apresentadoras da emissora e de suas afiliadas são majoritariamente brancos. Na principal novela em exibição, “A Regra do Jogo”, são 48 atores e atrizes no seu elenco central. 43 são brancos e 5 são negros. Os personagens são descritos pela emissora da seguinte forma: “Ninfa: beldade do morro e semideusa do funk”; “Dênis: bandido e membro da facção criminosa”; “Iraque: bonito e sedutor; mototaxista da comunidade”; “Indira: sensualíssima e cabeça dura” e “Dinorah: empregada doméstica há mais de 30 anos”.
O favelado compunha o samba, mas não ganhava dinheiro; o branco gravava e ficava rico. Não bastava o atacante ser bom de bola, precisava se pintar para não parecer tão negro. Se o personagem for um imperador, da elite social, ainda que africano, o papel tem que ser dado para um ator branco. Mas se o personagem for bandido, desenvolva um trabalho de baixa remuneração ou tenha apelo sexual, então o ator negro é o ideal para interpretá-lo.
E não só no campo do entretenimento seguem as opressões. No dia 18 de novembro, mais de 15 mil mulheres negras de todos os estados brasileiros marcharam em Brasília contra o racismo, a violência e pelo bem viver. Pouco adiantou para sensibilizar os meios de comunicação, que só transformou a marcha em notícia após um homem branco pró-impeachment ter atirado com um revólver durante a passeata. Ele foi a notícia, não as milhares de mulheres e suas reivindicações.
No dia 20, a marcha da Consciência Negra também reuniu milhares de pessoas em diversas cidades do Brasil. Em Salvador – cidade com mais negros no mundo fora da África – duas grandes passeatas marcaram o dia. Uma delas, que ocorreu no centro, praticamente não foi objeto de cobertura midiática. A outra, na área conhecida como Liberdade, a imprensa compareceu, atraída pela presença do ex-presidente Lula.
Os enquadramentos adotados pelos jornais relevam suas escolhas políticas. “Lula está em Salvador marchando no dia da Consciência Negra” rendeu mais notícia do que, por exemplo, “Movimento Negro quer o fim dos autos de resistência”; “Manifestantes são contra a redução da maioridade penal”; “Participantes pedem justiça no caso da Chacina da Vila Moisés/Cabula”.
Na mídia, aliás, pouco ou quase nada se discute sobre como manter vivos os jovens negros, o que fazer para que a população negra ocupe outros espaços que não os presídios ou também quais políticas públicas devem ser desenvolvidas junto aos moradores de favelas. E isso não ocorre por falta de apelo ou conhecimento. De acordo com o Mapa da Violência, no Brasil são assassinadas 116 pessoas por dia. Quase 70% são negros. Praticamente a mesma porcentagem de negros encarcerados, em um país que tem mais de seiscentos mil presos. Nas favelas, a contagem se repete: 72% dos moradores desses locais se declaram negros.
Portanto, mulheres, músicos, atores e jovens negros: as suas demandas políticas, o seu reconhecimento profissional, a valorização financeira do seu trabalho e o seu direito à vida continuam sendo cerceados. E o são também pelos homens brancos que, por razões históricas, controlam o poder econômico, político, religioso e midiático do país. Para mudar a realidade, é preciso disputar esses poderes. É preciso disputar a comunicação, hegemônica e alternativa, para que outras narrativas produzam novas representações e vivências. Que este novembro fortaleça esse movimento. “Fim da tempestade, o sol nascerá”.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Porque as "questões das mulheres" são questões de toda a sociedade

Mulheres abrem mão de carreira por causa de maridos, não de filhos, diz estudo




Pesquisa realizada nos EUA concluiu que elas se sentem pressionadas a assumir filhos e obrigações do lar para que maridos possam se dedicar à profissão
Muitas mulheres deixam suas próprias carreiras em segundo plano não para criar os filhos, mas para priorizar a carreira de seu parceiro. Esta é a conclusão de Pamela Stone, professora de Sociologia da Hunter College, em Nova York (EUA), em entrevista ao jornal espanhol El País nesta terça-feira (10/11).

Ela é uma das autoras do estudo “Life and Leadership after HBS” ("Vida e Liderança após Harvard Business School", em tradução livre). Em sua pesquisa, foram entrevistados 25 mil ex-alunos e ex-alunas da instituição, com idades entre 26 e 47 anos, com o objetivo de analisar as aspirações profissionais de homens e mulheres que foram preparados para posições de liderança no mercado de trabalho.

Segundo Stone, as mulheres sentem-se pressionadas por seus parceiros, pelas instituições onde trabalham e pela sociedade como um todo a assumir a criação dos filhos e as obrigações do lar para que seus companheiros possam se dedicar à carreira.

Agência Efe/Arquivo

Christine Lagarde é diretora do FMI (Fundo Monetário Internacional); ela, que tem dois filhos, não sucumbiu à pressão social
 
Como resultado, as mulheres se mostraram mais insatisfeitas com suas trajetórias profissionais do que os homens. Dados coletados mostraram que 60% dos homens estavam “extremamente satisfeitos” com suas experiências profissionais e oportunidades de promoção contra 40% de mulheres que descreveram sentir o mesmo. Dos homens que participaram da pesquisa, 83% eram casados.
 
Atualmente as mulheres ocupam menos de 20% dos cargos de responsabilidade nas 500 empresas mais importantes do mundo, de acordo com a revista Fortune. Além disso, a Organização Internacional do Trabalho divulgou, em março, um relatório indicando que não haverá igualdade salarial entre os sexos até 2085.   

Em Madri, 500 mil vão às ruas contra ‘terrorismo machista’ e violência de gênero; veja fotos

No Brasil, homicídios de mulheres negras aumentam 54% em 10 anos, mostra estudo da Flacso

O estudo ainda revelou que 75% dos homens esperava que, no futuro, suas companheiras assumissem a maior parte da responsabilidade de criar os filhos, e 50% das mulheres respondeu que esta seria de fato sua função. Entre os homens entrevistados, 70% considerava que suas carreiras teriam prioridade sobre a de suas esposas e cerca de 40% das mulheres concordaram com esta afirmação.

Para Pamela, a “culpa” é da própria sociedade. Ela acredita que as mulheres devem conversar com seus parceiros para poderem desenvolver suas carreiras e se sentirem mais satisfeitas profissionalmente.

“Os casais jovens que estão pensando em criar um projeto de vida juntos deveriam ter uma conversa sobre quais são as pretenções profissionais e pessoais de cada um. É muito importante escolher uma pessoa que respeite os nossos desejos”, disse. 

domingo, 1 de novembro de 2015

Refugiados, mídia brasileira, povo brasileiro

Imagem de Brasil hospitaleiro 'não passa de um mito', diz pesquisador




Gustavo Barreto analisou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração nos últimos 200 anos e avalia que racismo contra estrangeiros é constante no país

Mesmo em meio a uma crise política e econômica, o Brasil já deu abrigo a mais de 2.000 refugiados sírios desde o começo da guerra no país. O número, divulgado pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), revela que a abertura brasileira é maior do que a dos Estados Unidos (1.243) e até da Grécia (1.275), uma das portas de entrada na Europa, vinculando no mundo a imagem de um país hospitaleiro, onde todos os estrangeiros e imigrantes são bem-vindos.

"Isso não passa de um mito", assegura o pesquisador Gustavo Barreto, que defendeu recentemente uma tese sobre a percepção do estrangeiro pela imprensa brasileira. Após mergulhar em mais de 11 mil edições de jornais e revistas entre 1808 e 2015, ele concluiu que o racismo contra imigrantes, refugiados e estrangeiros é constante na imprensa brasileira, que emplaca a ideia de uma aceitação seletiva.

Leia também: Imigrantes negros que chegam ao Brasil deparam-se com 'racismo à brasileira', diz sociólogo

Sérgio Vale / Secom

Acre é uma das principais portas de entrada para haitianos que desejam reconstruir a vida no Brasil



Os imigrantes não viram notícia da mesma maneira. “Se for um imigrante ‘aceitável’, como os europeus, ele vai aparecer em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for ‘aceitável’, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam. Uma leva de haitianos é considerada uma ‘invasão’ e a mesma leva de espanhóis é considerada um ‘movimento migratório’”, explica Barreto.

Na tese “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre 1808 e 2015”, Barreto analisou a cobertura do tema em jornais como O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha da Manhã, Correio da Manhã, O País e Gazeta do Rio de Janeiro desde a chegada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro até hoje. Algumas matérias encontradas por Barreto e a introdução da tese estão disponíveis no site Mídia Cidadã.



Opera Mundi: Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre 1901 e 2000 a população brasileira saltou de 17,4 milhões para 169,6 milhões de pessoas, com 10% desse crescimento se devendo aos imigrantes. O Brasil é uma terra de imigração?

Gustavo Barreto: Eu diria que o país está em um meio termo. Terra de imigração são os Estados Unidos, a França, o Canadá, a Argentina. Nesses países, mesmo que se observe em alguns casos um direcionamento racial muito claro, a participação do imigrante na formação da sociedade é de duas a cinco vezes maior. Mas o Brasil é certamente um caso interessante, com diferentes povos interagindo quase que por acidente, diante da incoerência entre as políticas ao longo do tempo e dentro do país.

OM: “O Brasil está de braços abertos” para os refugiados, disse a presidente Dilma Rousseff em pronunciamento no último dia 7 de setembro. Qual é historicamente a visão do refugiado no Brasil? Com esta asserção do governo, você diria que existe uma inflexão importante?

GB: No Brasil, historicamente, o refugiado e o imigrante fugindo da guerra e da fome – caso de muitos europeus durante todo o século 19 e início do século 20 – são vistos como trabalhadores, recursos úteis para a economia. No entanto, somos responsáveis por algumas das políticas mais xenófobas e racistas já adotadas em qualquer país. Já no início da República, os governantes proibiram a entrada de “pretos” e “amarelos”, o que era mais ou menos um consenso no regime anterior. Depois, os gestores de Vargas deixavam claro que os negros “de fora” não deveriam se misturar com os negros brasileiros, o que se confirmava não só pelas declarações na imprensa como pela política adotada. Esse cenário nunca mudou totalmente nestes 200 anos que cobrem minha pesquisa. Existe uma política discricionária em relação à imigração, com algumas tentativas do governo federal, nos últimos 20 anos, de humanizar a questão do refúgio, por exemplo. Mas a lei voltada para os estrangeiros continua sendo uma lei aprovada durante a ditadura militar.
A visão do “Brasil de braços abertos” não me parece a mais adequada. Apesar de o governo federal adotar uma posição notoriamente divergente em relação a muitos países do mundo – e isso produz uma enorme diferença no cotidiano dos refugiados do Brasil, sem dúvida –, e certamente distinta em relação a outros tempos históricos de xenofobia aberta, o refugiado hoje sequer é recebido pelas instituições sociais federais ou regionais. No aeroporto, ainda é a Polícia Federal [que o recebe]. Ao entrar – quando consegue –, ele é recebido pela Igreja Católica ou por ONGs. Na prática, o governo empurra uma enorme responsabilidade para instituições que pouco podem diante de uma crise deste tamanho. Basta ver a situação das instituições receptoras de refugiados e de outros imigrantes em São Paulo. Apesar de o governo federal, em parceria com a ONU, dar algum apoio, a resposta ainda fica muito aquém do que deveria. E isso em um país que possui atualmente pouco mais de 8 mil refugiados, segundo os dados oficiais. Oito mil é o número aproximado de refugiados que entram pela Grécia [na Europa] todos os dias. É menos do que entra na Alemanha em algumas horas. Não temos condição de comparar, ainda.

Arquivo pessoal

O pesquisador Gustavo Barreto (esq.) estudou a cobertura da imprensa brasileira sobre imigração
Eu trocaria a imagem dos “braços abertos” pela imagem de alguém abrindo uma porta, de braços fechados, e permitindo a entrada dos refugiados. É uma ação humanitária louvável, mas está longe de serem os “braços abertos” anunciados.

OM: Como o imigrante vira notícia?

GB: Se for um imigrante “aceitável” – como os europeus ou alguns outros tidos como “brancos” (e a “branquitude” é social em alguns casos) –, [aparece na imprensa] em geral por aspectos tidos como culturais ou pelos dotes empresariais. Se não for “aceitável”, vira notícia pelo crime, pelos problemas sociais que enfrentam ou de dois em dois mil – ou seja, reúna dois mil haitianos no mesmo lugar e eles viram, talvez, notícia. Dentro deste mecanismo, não é difícil entender porque uma leva de haitianos é considerada uma “invasão” e a mesma leva de espanhóis é considerada um “movimento migratório”.
Recentemente, uma prova de vestibular de uma importante universidade privada questionou seus candidatos sobre qual é o imigrante “de que o Brasil precisa”. O gabarito trará provavelmente a ideia de que imigrantes são bons para a economia, como descreveu Sayad, enquanto outros não são necessários, não se “precisa” deles. O mais lamentável, a meu ver, é a ideia de que o imigrante ainda leva consigo, mesmo passados 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o carimbo de trabalhador, de necessário ou desnecessário. Mesmo que a História nos ensine que migrar é uma necessidade tão básica quanto comer.


OM: Hoje, como está percebida a chegada dos sírios e dos haitianos, dois povos empurrados de seus países em um contexto de emergência?

GB: A reação é totalmente diferente, e isso não é nenhuma novidade. Como o número de haitianos é grande desde 2010, eu pude observar na minha tese o racismo aberto e amplo contra os haitianos, quase todos negros. Até mesmo o medo do ebola atingiu os haitianos, que sequer passam pela África na rota mais comum para o Brasil.
Com os sírios – e ao longo da história tem sido assim, segundo pude observar na tese –, o cenário muda um pouco. Agora mesmo, podemos observar dezenas de matérias na imprensa de solidariedade com o povo sírio. A guerra não é a única explicação, do contrário a simpatia se estenderia aos refugiados da República Democrática do Congo, de Angola ou do Mali, por exemplo. E o que observamos é uma cobertura notoriamente negativa, quando haviam apenas angolanos e liberianos para mostrar. A cobertura sobre os angolanos nos anos 1990 os destacava como traficantes ou pequenos contraventores, marginalizados que estavam em bairros e favelas da periferia do Rio como o Complexo da Maré.
O que mudou, então? Os sírios, a meu ver, são mais palatáveis. E nos anos 1930, durante uma crise parecida no Oriente Médio, a mídia foi decisiva para eleger quais árabes eram aceitáveis e quais não eram. Em 1934, os assírios passaram em poucos meses de campanha midiática de “árabes cristãos” a “refugiados muçulmanos”. Depende da forma como você constrói. E a visibilidade positiva que você, enquanto editor, decide dar a cada povo. E isso está acontecendo hoje tal como há 200 anos vem acontecendo.


OM: Houve uma preocupação com o embranquecimento da sociedade brasileira?

GB: O tempo todo. Esta é uma dinâmica que corta toda a sociedade brasileira até os dias de hoje. O desejo de se europeizar permanece no discurso público, mesclado agora com a hegemonia norte-americana. Isso era claro durante todo o século 19 por meio de políticas públicas e discursos abertos; mais ou menos evidente durante a Primeira República; envergonhado, porém fortemente persistente durante o período Vargas; e envergonhado e persistente durante o pós-Segunda Guerra Mundial. Conforme destaquei anteriormente, a cobertura de imprensa ainda nos dá pistas concretas acerca da ideologia do embranquecimento. Mas é preciso, agora, avaliar o dito pelo não dito – certamente uma nova forma de perpetuar o racismo, mas ainda muito presente e ainda muito eficaz.

Reprodução Facebook

Refugiados durante
curso de adaptação gratuito oferecido pela USP com aulas gratuitas de geografia do Brasil


OM: Como é vista a imigração “natural”, a dos vizinhos?

GB: Igualmente problemática, porém mais antiga e, portanto, mais acomodada. A boa relação com os países do Mercosul ajuda bastante, mas há casos em que os estigmas que estão escondidos no cotidiano do brasileiro ressurgem a partir de matérias sensacionalistas da imprensa. Casos de crimes cometidos por estrangeiros, por exemplo, costumam ser ressaltados de modo que um país – e seus respectivos nacionais, portanto – passa a ser “condenável” na imprensa. Pelo menos por um período, enquanto durar a repercussão de um caso.

OM: Do ponto de vista do vocabulário, qual é, na imprensa, a diferença no uso dos termos imigrante, estrangeiro e refugiado?

GB: Isso pode variar, claro, mas eu observei na minha tese que há gradações de aceitação. O refugiado é o menos aceito, historicamente, por carregar o peso das guerras. Um dos principais autores que eu consultei, Abdelmalek Sayad, constata por exemplo que muitos dos imigrantes são obrigados a carregar o seu país nas costas. E com a evidência de uma guerra ou um conflito civil, o refugiado é o mais “pesado”.
O imigrante, por outro lado, é a incógnita. A questão acaba sendo essa: ao ser tornado uma incógnita, ele não é nem um cidadão de seu país, nem um cidadão nacional. Deixá-lo nesse limbo permite, por exemplo, que muitos governos expulsem imigrantes assim que estes se tornem não mais “desejáveis”, e a aceitação dele pode variar de acordo com fatores culturais ou econômicos.
O estrangeiro, por outro lado, é o “turista” do qual fala Zygmunt Bauman. A sua principal característica é a mobilidade. Ao contrário do imigrante, que é obrigado a se enraizar em um único lugar devido às dificuldades financeiras e políticas, o estrangeiro transita pelo mundo sem se preocupar com sua raiz. Ele pode se deslocar quando bem entender, e isso o diferencia inclusive do próprio nacional que nunca terá condições de se desterritorializar.

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Assistir a filmes com histórias tocantes ajuda a gerar compaixão no mundo real, dizem pesquisadores

ONU: Mais de meio milhão de refugiados e imigrantes chegou à Grécia pelo mar em 2015

USP oferece curso de adaptação com aulas gratuitas de geografia do Brasil para refugiados

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OM: Esses “papéis” podem ser trocados?

GB: Claro, o refugiado pode ser visto, arrisco, como um “coitado” que deve ser acolhido, enquanto o imigrante pode tomar o lugar do “aproveitador”, que quer apenas enriquecer e roubar os recursos do país. Estes são discursos bastante comuns durante toda a história do Brasil e foram feitos contra os judeus e alguns grupos de árabes, por exemplo, durante todo o início do século 20. O que todos estes discursos e conceitos promoveram, ao longo desse período? A desumanização daquela pessoa que está por trás do imigrante, do refugiado, do estrangeiro. Era uma forma de dizer claramente, seja para qual efeito fosse: você é o outro. Não somos iguais. Não é à toa que, conforme descrevo na tese, pelo menos 12 campos de concentração de estrangeiros foram identificados durante os anos 1930 e 1940. Não eram, certamente, os mesmos que se viam na Europa naquele momento. Mas a gênese e, inclusive, os grupos, eram os mesmos.

Luiz Carlos Erbes/ Câmara Municipal de Caxias do Sul

Ganenses que vieram para a Copa do Mundo em 2014 e pediram refúgio ao Brasil recebem orientação



OM: Como é percebido o estatuto do escravo, que foi um imigrante forçado?

GB: O escravo nunca foi reconhecido oficialmente como tal até o início da década de 2000. Até mesmo as Nações Unidas demoraram em reconhecer a escravidão como um crime contra a Humanidade, o que exige um processo de reparação e conciliação. Para que não se tenha dúvida de que o negro era nocivo ao futuro do Brasil, os republicanos do fim do século 19 legislaram para que fosse proibido subsidiar a entrada de imigrantes negros. A tese conta um caso curioso de um projeto de lei que tentou trazer negros livres para o Brasil na década de 1850, com recursos públicos. Não passou, evidentemente, mas isso demonstra um pouco a força que tem a figura do imigrante como trabalhador – o imigrante trabalhador é praticamente um pleonasmo na História da imprensa brasileira que pesquisei. E o negro era um “bom” trabalhador, desde que fosse colocado em seu lugar, de subalternidade.
A luta do negro para se tornar cidadão é tão atrasada que, eu arrisco, ainda está longe de chegar a um patamar aceitável de inclusão. As profissões similares ocupadas por escravos durante o século 19, como amas de leite e carregador, ainda são ocupadas por uma imensa maioria de negros. E isso tem a ver com o status do negro – e aí incluímos os haitianos, os malineses, os congoleses, etc – de subalternidade que é imposto na imprensa brasileira ao longo desses anos. Isso mudou? Não sei. Pela minha área de atuação, que é restrita aos imigrantes na imprensa, não muito.


OM: Diferentes comunidades costumam ser percebidas de maneiras diferentes: "os japoneses são trabalhadores", por exemplo. Existem muitos estereótipos?

GB: Os estereótipos são percebidos em toda a história da imigração relatada pela imprensa. Há dezenas de exemplos na tese e no site da tese. Eles mudam, é claro, de acordo com os ventos políticos. Há diversas entradas possíveis: ideológicas, sociais, culturais, religiosas. Depende dos objetivos de cada grupo político. Houve, como afirmei, quem defendesse o negro como trabalhador em plena década de 1850, enquanto outros trabalhadores – como os judeus e os árabes em alguns momentos no início do século 20 – foram tidos como “aproveitadores” por basearem toda a sua renda no comércio, que supostamente não “produzia” efetivamente nada. No fundo, os estereótipos cumprem uma função política. Uma vez alcançados os objetivos políticos, muitos dos estereótipos eram deixados de lado, substituídos pelo “humanismo” da “hospitalidade” brasileira – outro recurso usado na esmagadora maioria das vezes apenas com um propósito político. Incluindo o de expulsar algumas etnias.


OM: Houve épocas em que o imigrante era mais bem visto ou, ao contrário, mais rechaçado? Já houve a tentação de fechar as fronteiras?

GB: Não há nenhum período político brasileiro em que não houvesse a tentativa – muitas vezes bem-sucedida – de “fechar as fronteiras”. Todos – inclusive o atual. Essa tentação dá o tom do “diálogo” em torno da imigração. Mais recentemente, por exemplo, quando a imprensa relatou uma suspeita de ebola de um guineense no sul do país, milhares de comentários pelo fechamento das fronteiras foram repetidos nos portais de informação e pelas redes sociais, mesmo que a Organização Mundial da Saúde alertasse que este não era um caminho razoável ou aceitável. E isso tem a ver não apenas com a ideologia das pessoas, mas com a forma como a imprensa coloca o tema – conforme mostrei na tese. O sensacionalismo é um dos métodos para assustar as pessoas.
Em outros momentos, o imigrante por vezes era mais bem visto – o branco, católico, trabalhador – enquanto esse jogo poderia virar na geração seguinte – caso dos italianos “subersivos”, ou quando a Itália estava do “lado errado” da guerra. Há grupos, no entanto, que nunca tiveram uma aceitação ampla e irrestrita por parte da imprensa. É caso dos muçulmanos abertamente praticantes. E esse é um problema estrutural que persiste. Há, evidentemente, outros casos, como o dos paraguaios, dos bolivianos ou dos chineses. O estigma pesa muito mais do que em relação aos espanhóis ou os sírios, por exemplo.


OM: Qual é o impacto de eventos como o 11 de setembro ou ações do Estado Islâmico sobre a percepção do público brasileiro sobre árabes e muçulmanos?

GB: A imprensa passa a ideia, atualmente, que os atentados dos EI pesam sobretudo contra os cristãos, quando são os muçulmanos – qualquer um que se coloque contra o fundamentalismo e, portanto, uma imensa maioria de muçulmanos – as maiores vítimas. Não são os grandes eventos que formulam esse tipo de orientação, e sim a imprensa que, pouco a pouco, vai idealizando um cenário em que há atores facilmente identificáveis em um roteiro pré-moldado. Ao tentar “explicar” os acontecimentos de modo “simples”, a imprensa ainda continua ressuscitando velhos fantasmas de modo eletivo. É por isso que os rebeldes de maioria cristã da República Centro-Africana, que promovem atrocidades parecidas com as do Boko Haram, são muito menos conhecidos. Ou, em outro exemplo, é isso que faz com que os budistas sejam vistos no país como sinônimo de povo pacífico, mesmo que haja fundamentalistas extremamente violentos no sul da Ásia. Esses relatos não cabem na historinha contada na grande imprensa.

Lamia Oualalou / Opera Mundi

Salam é um dos refugiados que vive em ocupação de grupo de sem-teto no centro de São Paulo



OM: Existe um complexo de vira-lata em relação a alguns estrangeiros?

GB: Sem dúvida. Isso, no caso da tese, é percebido na forma elogiosa, quase que divina, que são relatadas algumas culturas europeias aqui estabelecidas. Isso nada tem a ver com a realidade, mas esse mecanismo tem a ver com a noção de que alguns povos são superiores a outros, o que tem sido combatido desde marcos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A minha real expectativa é de que essa diferenciação – pelo menos tal como se dava nos séculos anteriores – tende a enfraquecer.


OM: Como explicar a dificuldade encontrada para mudar o estatuto do estrangeiro, que data da época da ditadura?

GB: Trata-se de um misto de descaso com conservadorismo. Ainda impera, inclusive no discurso de esquerda – o que impressiona, pois trata-se evidentemente de um discurso da direita –, um nacionalismo que teima em segregar os nacionais e os estrangeiros, relegando os estrangeiros a eternos “outros”. Esse discurso não encontra base na realidade, mas persiste, de alguma forma. O descaso é coerente com a atenção que o tema recebe do público em geral. A questão imigrante parece um capítulo relegado ao esquecimento, uma nota de rodapé na história do Brasil. O assunto sempre retorna, mas como um detalhe, um apêndice.
A tese que prevaleceu é a tese conservadora do “caldeirão cultural”. Uma vez jogados todos num caldeirão, sairia uma raça melhorada, mistura da força do negro (ou sem o negro, de preferência) com a inteligência do europeu. Daí nasceria o brasileiro, o “diverso”, que é outra coisa, única. A ideia de que várias culturas poderiam conviver é pouco aceita, na prática: a diversidade tipicamente brasileira tem a ver com o fato de que todas as culturas deveriam sumir, produzindo o brasileiro miscigenado (porém brasileiro).
Dessa forma, mudar o estatuto de uma peça de segurança pública, como é atualmente, para uma legislação humanista e aberta à diversidade não encontra ampla aceitação na sociedade. Essa aceitação pode ser moldada e, novamente, os estereótipos certamente serão convidados a atuar politicamente em prol dos projetos em disputa. Essa é uma longa batalha e meu palpite é que, caso venha à tona, pode se tornar um grande debate nacional – o que, no cenário de ultraconservadorismo atual, pode ser um desastre. Analiso a cobertura da aprovação do estatuto em vigor, no início da década de 1980, e não me parece algo distante do que vivemos hoje.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

As mídias e o estupro naturalizado

26/10/2015 - Copyleft
Boletim Carta Maior 

Sobre meninas e lobos

A cultura do estupro, que significa o consenso e a naturalização da violência contra a mulher, domina a publicidade e os meios de comunicação.


Marina Ganzarolli*
 
reprodução
Nesta semana (20) começou o “MasterChef júnior Brasil”, uma competição culinária transmitida pela Rede Band entre 20 crianças, de 9 a 13 anos de idade. Após o primeiro episódio, a repercussão nas redes sociais em relação a uma das participantes, a menina Valentina, gerou revolta na Internet. Mensagens pornográficas e apologia à pedofilia resumem o conteúdo dos tuítes direcionados à garota e dos comentários estampados na página Admiradores da Valentina, criada no Facebook:  “Se tiver consenso é pedofilia?”, dizia uma delas.


Não existe relação sexual consensual com uma criança. Uma menina, assim como toda criança, não tem plena capacidade para fazer pra fazer essa escolha, nem pra se defender, se forçada. Não importa se ela se parece com uma criança ou com uma mulher. Uma mulher no espaço público também não é sinônimo de um corpo à disposição do desejo e do prazer masculinos. Nem as meninas tampouco as mulheres estão fadadas à manutenção do trabalho reprodutivo no espaço privado. A todas deve ser garantido o direito de serem livres, de fazerem suas escolhas, de possuírem autonomia sobre seus corpos e sobre sua sexualidade. Mas na realidade, estamos em constante e precocemente sujeitas às mais diversas formas de controle e violências em uma sociedade essencialmente machista.


Em resposta à violência e ignorância dos tuites e postagens,  no dia 22 o coletivo ThinkOlga, idealizador da campanha Chega de FiuFiu, lançou a hashtag #PrimeiroAssédio no Twitter, concentrando em algumas horas milhares de relatos sobre a primeira vez em que meninas e mulheres sofreram algum tipo de assédio ou violência sexual: “Ônibus cheio, eu sentada no colo da minha mãe (cega). Homem abre o zíper da calça e me mostra o genital. Eu tinha 8 anos”, relatou uma delas. Novamente, a contrarreação aos relatos que inundaram as redes sociais chamam a atenção para a naturalização da violência contra a mulher, gordofobia e culpabilização da vítima: “Só mina gorda e feia nesse #primeiroassédio” disse um deles. O líder da banda Ultraje a Rigor, o ultrarreacionário Roger Moreira e uma espécie de Lobão engraçadinho, fez piada sobre o assunto e ironizou os relatos de violência e abuso que circularam na web: “Acho que eu tinha uns 10 anos. Uma empregada deixou eu pegar nos peitos delas. Foi bom pra cassete”, disse.


Segundo o IPEA, em relação ao total das notificações de estupro ocorridas em 2011, 88,5% das vítimas eram mulheres, mais da metade tinha menos de 13 anos de idade e mais de 70% dos estupros vitimizaram crianças e adolescentes. A violência sexual é a quarta violação mais recorrente contra crianças e adolescentes denunciada no Disque Direitos Humanos (Disque 100).


O Brasil foi o primeiro país a promulgar um marco legal dos direitos humanos de crianças e adolescentes, em consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). O ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 só foi possível graças à mudança de paradigma provocada pela Constituição de 1988, quando passamos a falar em proteção integral dos direitos da criança. A visão higienista e correcional dada a “criança-menor” foi substituída pela perspectiva da criança enquanto sujeito de direitos. O enfrentamento da violência sexual – para o qual quase não havia política pública alguma na época – ganhou destaque na Carta Constitucional (parágrafo 4o, art. 227). O ECA prevê que quem aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso a pena de reclusão de 1 a 3 anos mais multa (art. 241-D).    


Assim, desde 1988 muita coisa mudou e hoje dispomos de um Sistema de justiça e de segurança específicos para crianças e adolescentes e de um Comitê, um Conselho misto e um Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.

Apesar de o enfretamento institucional do problema ter avançado, culturalmente, desgraçadamente, parece que não saímos do lugar. Nesta semana (21), Pedro Magalhães Ganem (JusBrasil) relatou um caso no Espírito Santo em que o Juiz determinou que o estuprador registrasse a criança que foi gerada em decorrência do estupro, no caso, o avô do bebê e pai da vítima, uma criança de 13 anos. Ou seja, se temos um arcabouço legal relativamente avançado, os que deveriam aplica-lo nem sempre agem em consonância com o respeito aos direitos humanos e a proteção simbólica e material das vítimas.

A cultura do estupro, que significa o consenso e a naturalização da violência contra a mulher, também domina os meios de comunicação. A recente novela da Globo Verdades Secretas envolvia a trama de uma menina de 16 anos que, em busca do sonho de virar modelo, acaba virando profissional do sexo e se envolve com um homem acima dos 40 anos. Para manter o relacionamento ele se casa com a mãe da garota e, na condição de seu padrasto, controla todos os movimentos da menina. A relação extremamente abusiva, romantizada pela TV, não impediu que a novela obtivesse altos índices de audiência, implicando num sinal de menos para a mulher enquanto sujeito de direitos.

Falar sobre pedofilia não é fácil. A maioria dos comentários expressa nojo e repulsa diante das mensagens criminosas dirigidas à Valentina. Mas como bem explica a própria Carol Patrocinio, a pedofilia tem duas definições: trata-se (i) de uma perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por crianças ou (ii) da prática efetiva de atos sexuais com crianças. Dessa forma, antes de acontecer o crime (ii), temos que enfrentar a doença (i).


Mas esses meninos e homens, melhor intitulados pedófilos e criminosos, não vivem em Marte, não estão apartados da realidade social que os circunda. Pelo contrário. Eles são diariamente bombardeados com imagens de crianças hiperssexualizadas, de corpos de mulheres objetificados como pedaços de carne, de adultas infantilizadas, de padrões inalcançáveis de beleza, magreza e branquitude.


A nova garota-propaganda da gigante da moda Dior, a modelo israelense Sofia Mechetner, tem apenas 14 anos. Sofia abriu o desfile de inverno da marca italiana em julho deste ano e às críticas a sua tenra idade não foram suficientes: a modelo e a coleção são um sucesso.  Em 2008 uma campanha publicitária da marca de roupas infantis Lilica Ripilica em que uma menina de cerca de 4 anos aparecia deitada em uma pose sensual, segurando um doce com os dizeres “Use e se lambuze”, foi retirada de circulação, dado sua conotação erótica. Em mraço deste ano, a marca de roupas Use Huck, do apresentador Luciano Huck, foi notificada pelo PROCON do Rio de Janeiro após estampar camisetas infantis com a frase “Vem ni min que eu tô facin”. Após a repercussão negativa a marca se desculpou e cessou a venda do produto em seu site.


O Instituto Alana, criador do projeto Criança e Consumo, alerta para os impactos negativos do consumismo infantil e para a relação direta entre erotização precoce e exploração sexual de crianças e adolescentes. A identidade da criança está em constante formação e desenvolvimento até que ela alcance a vida adulta. Produtos como maquiagem e sutiã com bojo para crianças, disponíveis no mercado, geram estímulos com os quais as crianças – em processo de formação da autoestima – não sabem lidar.


A noção de pertencimento a um grupo, a identidade da criança, está em constante formação e desenvolvimento até a vida adulta, quando tem plena capacidade não só de tomar decisões, mas de compreender a extensão e as consequências de suas escolhas. Mas numa sociedade capitalista de consumo, o quanto antes as crianças virarem consumidores, melhor. Pouco importa que a publicidade promova a adultização e hipersexualização das crianças e acarrete um encurtamento da infância.


Não adianta achar “nojento” e acreditar que nada disso tem a ver com você e com a sua família. Argumentos como “imagina se fosse com a sua filha” ou “não dá pra generalizar, nem todos os homens são assim” apenas mascaram o que importa: as vítimas e sua dignidade enquanto seres humanos, sujeitos de direitos. Nossa opinião é irrelevante. Fato é que todas as meninas e mulheres estão sujeitas à violência, diariamente. Isso sim pode ser generalizado. É por isso que temos que falar sobre gênero e sexualidade das escolas. É por isso que não avançaremos enquanto estivermos ensinando a nossas meninas a “se comportarem” – não usar saia, falar baixo, não beber, não sair à noite, não descobrir sua sexualidade, basicamente, não viver – e não a nossos meninos a não estuprarem as mulheres. Todas as mulheres estão sujeitas à violência, ao assédio e ao abuso e os “lobos” estão sempre mais próximos do que se imagina. São o pai, o tio, o padrasto, o primo, o vizinho, o colega de trabalho, o amigo da escolar, o moço do bar, o cara da televisão, a propaganda do desenho, uma brincadeira inocente ou aquela piada inofensiva.


* Marina Ganzarolli é advogada, co-fundadora do Coletivo Dandara da Faculdade de Direito da USP, pesquisadora do Núcleo de Direito e Democracia (NDD) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), e foi Conselheira Municipal da Criança e do Adolescente da Cidade de São Paulo.