segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Sobre que notícia? - III

Funcionária da Petrobrás: 'O Globo não tem compromisso com a verdade'

Escrito por: Redação
Fonte: Portal Vermelho

O blog Tijolaço publicou a carta aberta da petroleira Michele Daher Vieira ao jornal O Globo e à repórter Letícia Vieira, autora do texto Petrobras: a nova rotina do medo e tensão na estatal. A funcionária da estatal teve nome citado e imagem utilizada na reportagem e decidiu desabafar, desnudando as intenções do veículo na cobertura das investigações da operação Lava Jato.

Na carta, a petroleira Michele, questiona-se sobre “como a dita jornalista sabe tão detalhadamente a respeito do nosso cotidiano de trabalho para escrever com tanta propriedade, como se tudo fosse a mais pura verdade”.
 
Diante das coberturas, Michele conclui: “Não é de hoje que as Organizações Globo tem objetivo muito bem definido [3] em relação à Petrobras: entregar um patrimônio que pertence à população brasileira à interesses privados internacionais. É a este propósito que a Leticia Fernandes serve quando escreve sua matéria”.
 
Leia a íntegra da carta:
 
Carta aberta à Leticia Fernandes e ao jornal O Globo
 
Antes de tudo, gostaria de deixar bem claro que não estou falando em nome da Petrobras, nem em nome dos organizadores do movimento “Sou Petrobras”, nem em nome de ninguém que aparece nas fotos da matéria. Falo, exclusivamente, em meu nome e escrevo esta carta porque apareço em uma das fotos que ilustram a reportagem publicada no jornal O Globo do dia 15 de fevereiro, intitulada “Nova Rotina de Medo e Tensão”.
 
Fico imaginando como a dita jornalista sabe tão detalhadamente a respeito do nosso cotidiano de trabalho para escrever com tanta propriedade, como se tudo fosse a mais pura verdade, e afirmar com tamanha certeza de que vivemos uma rotina de medo, assombrados por boatos de demissões, que passamos o dia em silêncio na ponta das cadeiras atualizando os e-mails apreensivos a cada clique, que trabalhamos tensos com medo de receber e-mails com represálias, assim criando uma ideia, para quem lê, a respeito de como é o clima no dia a dia de trabalho dentro da Petrobras como se a mesma o estivesse vivendo.
 
Acho que tanta criatividade só pode ser baseada na própria realidade de trabalho da Letícia, que em sua rotina passa por todas estas experiências de terror e a utiliza para descrever a nossa como se vivêssemos a mesma experiência. Ameaças de demissão assombram o jornal em que ela trabalha, já tendo vários colegas sendo demitidos[1], a rotina de e-mails com represálias e determinando que tipo de informação deve ser publicada ou escondida devem ser rotina em seu trabalho[2], sempre na intenção de desinformar a população e transmitir só o que interessa, mantendo a população refém de informações mentirosas e distorcidas.
 
Fico impressionada com o conteúdo da matéria e não posso deixar de pensar como a Letícia não tem vergonha de a ter escrito e assinado. Com tantas coisas sérias acontecendo em nosso país ela está preocupada com o andar onde fica localizada a máquina que faz o café que nós tomamos e com a marca do papel higiênico que usamos. Mas dá para entender o porque disto, fica claro para quem lê o seu texto com um mínimo de senso crítico: o conteúdo é o que menos importa, o negócio do jornal é falar mal, é dar uma conotação negativa, denegrir a empresa na sua jornada diária de linchamento público da Petrobras. Não é de hoje que as Organizações Globo tem objetivo muito bem definido[3] em relação à Petrobras: entregar um patrimônio que pertence à população brasileira à interesses privados internacionais. É a este propósito que a Leticia Fernandes serve quando escreve sua matéria.
 
Leticia, não te vejo, nem você nem O Globo, se escandalizado com outros casos tão ou mais graves quanto o da Petrobras. O único escândalo que me lembro ter ganho as mesma proporção histérica nas páginas deste jornal foi o da AP 470, por que? Por que não revelam as provas escondidas no Inquérito 2474[4] e não foi falado nisto? Por que não leio nas páginas do jornal, onde você trabalha, sobre o escândalo do HSBC[5]? Quem são os protegidos? Por que o silêncio sobre a dívida da sonegação[6] da Globo que é tanto dinheiro, ou mais, do que os partidos “receberam” da corrupção na Petrobras? Por que não é divulgado que as investigações em torno do helicoca[7] foram paralisadas, abafadas e arquivadas, afinal o transporte de quase 500 quilos de cocaína deveria ser um escândalo, não? E o dinheiro usado para construção de certos aeroportos em fazendas privadas em Minas Gerais [8]? Afinal este dinheiro também veio dos cofres públicos e desviados do povo. Já está tudo esclarecido sobre isto? Por que não se fala mais nada? E o caso Alstom[9], por que as delações não valem? Por que não há um estardalhaço em torno deste assunto uma vez que foi surrupiado dos cofres públicos vultosas quantias em dinheiro? Por que você e seu jornal não se escandalizam com a prescrição e impunidade dos envolvidos no caso do Banestado[10] e a participação do famoso doleiro neste caso? Onde estão as manchetes sobre o desgoverno no Estado do Paraná[11]? Deixo estas perguntas como sugestão e matérias para você escrever já que anda tão sem assunto que precisou dar destaque sobre o cafezinho e o papel higiênico dos funcionários da Petrobras.
 
A você, Leticia, te escrevo para dizer que tenho muito orgulho de trabalhar na Petrobras, que farei o que estiver ao meu alcance para que uma empresa suja e golpista como a que você trabalha não atinja seu objetivo. Já você não deve ter tanto orgulho de trabalhar onde trabalha, que além de cercear o trabalho de seus jornalistas determinando “as verdades” que devem publicar, apoiou a Ditadura no Brasil[12], cresceu e chegou onde está graças a este apoio. Ao contrário da Petrobras, a empresa que você se esforça para denegrir a imagem, que chegou ao seu gigantismo graças a muito trabalho, pesquisa, desenvolvimento de tecnologia própria e trazendo desenvolvimento para todo o Brasil.
 
Quanto às demissões que estão ocorrendo, é muito triste que tantas pessoas percam seu trabalho, mas são funcionários de empresas prestadoras de serviço e não da Petrobras. Você não pode culpar a Petrobras por todas as mazelas do país, e nem esperar que ela sustente o Brasil, ou você não sabe que não existe estabilidade no trabalho no mundo dos negócios? Não sabe que todo negócio tem seu risco? Você culpa a Petrobras por tanta gente ter aberto negócios próximos onde haveria empreendimentos da empresa, mas a culpa disto é do mal planejamento de quem investiu. Todo planejamento para se abrir um negócio deveria conter os riscos envolvidos bem detalhados, sendo que o maior deles era não ficar pronta a unidade da Petrobras, que só pode ser culpada de ter planejado mal o seu próprio negócio, não o de terceiros. Imputar à Petrobras o fracasso de terceiros é de uma enorme desonestidade intelectual.
 
Quando fui posar para a foto, que aparece na reportagem, minha intenção não era apenas defender os empregados da injustiça e hostilidades que vem sofrendo sendo questionados sobre sua honestidade, porque quem faz isto só me dá pena pela demonstração de ignorância. Minha intenção era mostrar que a Petrobras é um patrimônio brasileiro, maior que tudo isto que está acontecendo, que não pode ser destruída por bandidos confessos que posam neste jornal como heróis, por juízes que agem por vaidade e estrelismos apoiados pelo estardalhaço e holofotes que vocês dão a eles, pelo mercado que só quer lucrar com especulação e nunca constrói nada de concreto e por um jornal repulsivo como O Globo que não tem compromisso com a verdade nem com o Brasil.
 
Por fim, digo que cada vez fica ainda mais evidente a necessidade de uma democratização da mídia, que proporcionará acesso a uma diversidade de informação maior à população que atualmente é refém de uma mídia que não tem respeito com o seu leitor e manipula a notícia em prol de seus interesses, no qual tudo que publica praticamente não é contestado por não haver outros veículos que o possa contradizer devido à concentração que hoje existe. Para não perder um poder deste tamanho vocês urram contra a reforma, que se faz cada vez mais urgente, dizendo ser censura ou contra a liberdade de imprensa, mas não é nada além de aplicar o que já está escrito na Constituição Federal[12], sendo a concentração de poder que algumas famílias, como a Marinho detém, totalmente inconstitucional.
 
Sendo assim, deixo registrado a minha repugnância em relação à matéria por você escrita, utilizando para ilustrá-la uma foto na qual eu estou presente com uma intenção radicalmente oposta a que ela foi utilizada por você.
 
Fontes:
 
[1] Demissões nas Organizações Globo:
 
 
[2] Exemplos de o que deve e não deve ser publicado:
 
 
[3] Objetivos:
 
 
[4] Inquérito 2474:
 
 
[5] Escândalo do HSBC:
 
 
[6] Sonegação Globo:
 
 
[7] Helicoca:
 
 
[8] Aeroportos Mineiros:
 
 
[9] Alstom:
 
 
[10] Banestado:
 
 
[11] Beto Richa e o Paraná:
 
 
[12] Globo e a Ditadura:
 
 
[13] CF/88:
 
Diz o artigo 220 da Carta, no inciso II do parágrafo 3°:
II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
Já o parágrafo 5° diz:
Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
E o artigo 221. por sua vez, prescreve:
Art. 221. A produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão aos seguintes princípios:
I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;
II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação;
III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei;
IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Sobre que notícia? - II

Por que os jornalistas brasileiros não reagem à manipulação da mídia?

 

Fabio Lau*
Correio do Brasil 

O profissional de longa data ainda acrescentou: 'Aqui, se o repórter fizer isso, será discriminado pelos próprios colegas. Obedecer cegamente ao anseio do chefe (lugar-tenente do patrão) é sinônimo de profissionalismo!'

A atitude do jornalista inglês do The Daily Telegraph, Peter Oborne, que pediu demissão por não concordar com a linha editorial do jornal na cobertura do escândalo Swissleaks/HSBC não repercutiu na mídia tradicional brasileira. Nas suas páginas, telas ou ondas de rádio, naturalmente. Mas no meio profissional, nas rodas de conversa, o caso foi debatido – aos sussurros – durante todo o dia.
– Lá é fácil. Lá tem oferta de emprego e os patrões não representam uma oligarquia!
O profissional de longa data ainda acrescentou: “Aqui, se o repórter fizer isso, será discriminado pelos próprios colegas. Obedecer cegamente ao anseio do chefe (lugar-tenente do patrão) é sinônimo de profissionalismo!”
Fechadas as aspas, a gente encontra o tabuleiro que separa as peças deste jogo onde dono de jornal se diz porta-voz da mídia livre, mesmo que seja capaz de atos como o denunciado por Oborne: amenizar as críticas ao acusado (no caso, um dos maiores bancos do mundo) em troca de publicidade. Afinal, ao lado da corrupção profissional, ele apresentará uma justificativa que pode até soar nobre: agiu para garantir a sobrevivência da sua empresa, ao lado do status de empresário bem-sucedido.
Para que um leitor comum entenda, esta concessão escusa está para o jornalista (ou dono da mídia) como estaria a prática da eutanásia para um médico ou a assinatura da pena de morte por um juiz. São atos organicamente contraditórios.
Aos 58 anos, Peter Oborne reagiu de forma definitiva porque entendeu que os leitores do Daily Telegraph estavam sendo lesados no seu direito de serem bem informados.
O jornalista obtinha informações importantes sobre o esquema HSBC, chamado pela mídia internacional de Swissleaks, e o jornal as ignorava. Além disso, Oborne descobriu que naquele ano em que as denúncias começaram a surgir um patrocínio milionário fora oferecido pelo HSBC a uma das empresas do seu patrão. Estava fechado o círculo.
A omissão de conteúdo de informação, ou jornalístico, é o bem mais precioso cambiado pelas empresas de má fé. Negar a informação ao leitor/telespectador/ouvinte é mais lesivo (e lucrativo, se visto na outra ponta) do que deturpar ou favorecer. Omita o delito e ele, como num passe de mágica, deixará de existir. Por isso ele é tão caro – em todos os sentidos.
Não é de se esperar gestos heroicos de jornalistas brasileiros. A falta de pluralidade da mídia de certa forma pode tornar seletiva, também, a maneira de enxergar de muitos profissionais quanto ao contexto político em que se esteja inserido. Portanto, não são aparentemente tantos os casos de dramas de consciência ou frustração.
Outro particular é a escassez cada vez maior de postos de trabalho. Detentoras do mercado profissional, as cinco principais empresas brasileiras de comunicação jogam nas diversas esferas das plataformas de mídia (praticando a chamada propriedade cruzada) e sabotam a possibilidade de pluralizar o mercado. Controlam a verba de publicidade, privada e pública, eliminando assim o mais remoto ensaio de concorrência. Além disso, reféns do modelo e da força manifestos pela mídia corporativa, os governantes, de todos os partidos e matizes, se curvam e evitam o confronto.
Iniciativas heroicas da mídia livre, notadamente instadas na internet, são o único foco de resistência ao modelo que é lesivo aos leitores/ouvintes/telespectadores/internautas e jornalistas. Somente estes pequenos empreendimentos garantem a possibilidade de fazer vazar informações controladas – como o pedido de demissão de um importante jornalista do Daily Telegraph, por razões profissionais e éticas.
Por outro lado, no contexto das redações brasileiras, não raro percebe-se, aqui e ali, uma reportagem que de tão profunda e contestadora, transgressora até do ambiente político tradicional, faz despertar no seu consumidor (de TV, jornal, rádio ou internet) a crítica sobre o universo que o cerca e que a velha mídia tenta colorir com o ponto de vista do dono – do dono da voz.
Estes heróis das redações, muitas vezes anônimos, são de fato os nossos focos de resistência na mídia corporativa. E o consumidor desavisado não faz ideia da oposição que estes jornalistas enfrentam, muitas vezes de seus próprios colegas, por pensarem e tentarem agir de forma diferente, mais livre. Em cada oportunidade, em cada brecha, surgem os jornalistas de verdade. São eles os Peter Oborne das nossas redações.
*Fábio Lau é jornalista, editor-chefe do portal de notícias Conexão Jornalismo.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Sobre que notícia?

Empório Brasil de notícias

Escrito por: Luciano Martins Costa
Fonte: Observatório da Imprensa 

Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 12/2/2015

Jornalistas bem posicionados na mídia tradicional costumam justificar o clima de guerra que a imprensa mantém e estimula contra a aliança partidária que governa o Brasil desde 2003 com a frase produzida pelo artista plástico, tradutor e humorista Millôr Fernandes (1923-2012), segundo o qual 'imprensa é oposição; o resto é armazém de secos e molhados'.

Jornalistas bem posicionados na mídia tradicional costumam justificar o clima de guerra que a imprensa mantém e estimula contra a aliança partidária que governa o Brasil desde 2003 com a frase produzida pelo artista plástico, tradutor e humorista Millôr Fernandes (1923-2012), segundo o qual “imprensa é oposição; o resto é armazém de secos e molhados”. No entanto, como é prática na imprensa brasileira, a frase anedótica é repetida fora de seu contexto, no mesmo processo utilizado para falsear investigações, manipular indicadores e distorcer declarações.
Millôr cunhou a expressão para criticar a imprensa, em 1964, quando lançou a revista satírica Pif Paf, e nunca escondeu as grandes restrições que fazia às empresas de comunicação do Brasil, que conspiraram e apoiaram a ditadura militar e só deixaram de ser subservientes quando a censura se estabeleceu nas redações. Em 1980, em entrevista que depois se transformou no livro intitulado A entrevista, ele diria, enfaticamente, que “a imprensa brasileira sempre foi canalha. Se fosse um pouco melhor, poderia ter uma influência maravilhosa sobre o país”.
A frase famosa também poderia ter uma versão posterior, e atribuída ao diretor de Redação da Folha de S.Paulo, Otavio Frias Filho, que em fevereiro de 1996 declarou, no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, que a imprensa estava sendo servil ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. Para ser mais preciso, o leitor pode ir aos arquivos (ver aqui) e comprovar o que disse literalmente o dirigente do diário paulista, ao responder uma pergunta do jornalista Dante Mattiusse sobre certa benevolência dos jornais com o governo da época:
“Com relação ao governo Fernando Henrique Cardoso, eu concordo totalmente. Eu acho que, de um modo geral, a imprensa brasileira tem sido quase que de um servilismo em relação a esse governo. Poucas vezes eu presenciei na minha vida profissional, exceto naquele curto interregno inicial do governo Collor, poucas vezes eu presenciei na mídia um espetáculo de tamanha adesão em relação ao governo, aos valores do governo, aos supostos acertos desse governo, às políticas desse governo”.
Dois partidos, duas balanças
Essa afirmação poderia ser repetida, em 2014, com referência à relação diferenciada da imprensa brasileira, conforme se trata o governo paulista, em mãos do PSDB, e o governo federal ou da administração petista na capital de São Paulo. Se questionado, Otavio Frias Filho seria obrigado a admitir que sua frase serviria, agora, para identificar a subserviência da mídia tradicional – a Folha incluída – ao governador Geraldo Alckmin.
No Estado de S. Paulo, podia-se ler na edição de quarta-feira (11/2): “Escola de SP tem sala com até 85 estudantes”. A reportagem, que apontava a superlotação e o fechamento de 3.017 salas nas escolas estaduais, justificava um escândalo, mas ficou por isso mesmo e não houve maior repercussão. A Folha ignorou o assunto, mas publicou na quinta-feira (12/2): “Haddad descumpre meta de lotação de sala na pré-escola” – e dá-lhe crítica pelo fato de a prefeitura paulistana colocar em média 31 crianças por sala, tendo anunciado que o ideal seria 29 alunos por sala.
Na cobertura sobre a crise de abastecimento de água na região da capital paulista, é notável o esforço dos jornais em destacar as medidas adotadas pelo governador, esquecendo suas responsabilidades por não haver tomado providências preventivas para evitar o problema. Por exemplo, a imprensa apresenta como positiva a primeira reunião do comitê metropolitano de gestão da crise hídrica, quando a medida só foi tomada pelo governador depois que os prefeitos da região se queixaram da centralização das decisões.
A lista de assuntos em que o dedo da imprensa pesa mais de um lado do que do outro é interminável, mas alguns detalhes podem ser observados a olho nu pelo leitor crítico. Por exemplo, registre-se o rigor com que a polícia paulista reprimiu os manifestantes que protestavam contra a crise de abastecimento de água, na quarta-feira (11), e aguarde-se a atitude das forças policiais no próximo dia 15/2, durante a manifestação programada para pedir o impeachment da presidente da República.
A metáfora de Millôr Fernandes faz sentido, quando se imagina que uma imprensa sem crítica equivale a qualquer outro tipo de negócio, como, por exemplo, um botequim ou uma loja de varejo. Mas quando a imprensa é oposição seletiva, conforme a sigla que está no poder, fica mais parecida com uma casa de tolerância.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Stuart Hall

0/02/2015 às 15:04

Um esquecido nos estudos de mídia no Brasil

Escrito por: Venício A. de Lima
Fonte: Observatório da Imprensa 

Texto preparado para apresentação no ciclo de debates "A Multiplicidade de Stuart Hall" realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação, SESC São Paulo, em 6 de fevereiro de 2015, título original "O Stuart Hall 'esquecido': estudos de mídia no Brasil". O A. agradece às professoras Sylvia Moretzsohn (UFF) e Ana Paola Amorim (FUMEC/BH) e ao professor Juarez Guimarães (UFMG) pelos comentários e sugestões, e a Zildete Melo pela leitura vigilante em relação à correção gramatical do texto.

 

“Viver a política é diferente de ser abstratamente a favor dela.” Stuart Hall (1996)

Introducing the Forgotten Stuart Hall: His Early Work (Introduzindo o Stuart Hall Esquecido: seus primeiros trabalhos): este é o título que o professor britânico James Curran deu à sua apresentação no seminário internacional realizado em memória de Stuart Hall (1932-2014) no Goldsmiths College da Universidade de Londres, em novembro de 2014. [O programa completo da “Stuart Hall International Conference: Conversations, Projects and Legacies” e os vídeos de todas as apresentações estão disponíveis aqui, acesso em 20/12/2014.]
Curran argumentou convincentemente que a grande repercussão alcançada pela produção teórica sobre etnicidade e multiculturalismo do Stuart Hall maduro fez com que se subestimasse o valor de seus primeiros textos. A exceção seria o conhecido Encoding and Decoding in TV Discourse, cuja publicação original é de 1973.
Em sua apresentação, ele escolheu falar sobre dois desses trabalhos iniciais, ambos livros em coautoria: The Popular Arts, de 1964 e Policing the Crisis, de 1978. Dedicados às questões sobre cultura de massa (popular culture) e sobre o poder ideológico da mídia, são anteriores à década de 1990 quando Hall “desloca” sua atenção, sobretudo, para os estudos ligados à raça e à etnia.
Liv Sovik (2010, p. 2), reconhecida especialista no pensamento de Stuart Hall, afirma que “a partir dos anos 90, a questão do racismo e da diáspora, sobretudo a africana no Novo Mundo e, em um segundo movimento, na Europa (é central para a produção de Hall)”. Ele próprio comentou que esse “deslocamento”, no qual “as questões críticas de raça, a política racial, a resistência ao racismo, questões críticas da política cultural (foram colocadas na agenda dos Estudos Culturais), representou uma virada decisiva no [seu]trabalho intelectual e teórico” [Stuart Hall, “Estudos Culturais e seu legado teórico” in Da Diáspora, p.210].
Consideradas as circunstâncias de seu tempo, afirma Curran, os trabalhos iniciais anteriores à “virada intelectual” de que fala Hall, mudaram o rumo das reflexões sobre a mídia na Inglaterra, tanto na academia quanto no debate público.
Entre nós, no mais recente dicionário acadêmico de comunicação (Dicionário de Comunicação – Escolas, Teorias e Autores, 2014), apesar de citado nos verbetes dedicados a dois autores (Raymond Williams e Guilhermo Orozco), a cinco teorias (Estudos de mídia/Televisão, Estudos de recepção e audiência, Marxismo e comunicação, Práticas de pertencimento em comunicação e Tendências de estudo em comunicação) e a uma escola (Estudos culturais ingleses), Stuart Hall não mereceu um verbete para si próprio.
Poderia o argumento de James Curran sobre “o Stuart Hall esquecido” servir de ponto de partida também para uma avaliação de sua influência nos estudos de mídia no Brasil?

1. As traduções de Stuart Hall no Brasil
Um pressuposto para que a influência de um autor estrangeiro se dissemine é que seu trabalho esteja disponível no idioma de seus eventuais leitores. Vamos começar, portanto, pelas traduções de Stuart Hall.

Registro inicialmente que, embora a Editora Zahar tenha publicado há 35 anos (1980), sem maiores repercussões, a coletânea Da Ideologia – que inclui um ensaio escrito por Stuart Hall [“O interior da ciência: ideologia e a ‘sociologia do conhecimento’”] e outro que ele assina coletivamente [“Política e Ideologia: Gramsci”] –, só depois dos 90 começam a circular traduções de seus textos mais importantes no Brasil.
A primeira tradução de peso nos chegou via Portugal, em obra de referência sobre jornalismo, organizada por Nelson Traquina – Jornalismo: Questões, Teorias e “Estórias” – publicada em Lisboa, em 1993 e com ampla circulação nos nossos cursos de Comunicação. Nela estava incluído o terceiro capítulo do Policing the Crisis: “A produção social das notícias: o ‘mugging’ nos mídia”. Quatro anos depois, em 1997, aparece o livro Identidades Culturais na Pós-Modernidade da DP&A Editora, um ensaio sobre a crise de identidades no contexto da globalização do final do século 20. E, somente em 2003, após a visita de Stuart Hall ao Brasil para participar de um congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada, realizado na Bahia, em julho de 2000, surge a coletânea organizada por Liv Sovik, Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. [Pelo menos dois outros textos “menores” de Stuart Hall foram traduzidos no Brasil: “O papel dos programas culturais na televisão britânica” (1972) e “A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo” (1997). Registre-se também que a tradução de “Estudos Culturais e seu legado teórico”, que aparece em Da Diáspora (2003), havia sido anteriormente publicada na Revista de Comunicação e Linguagens, nº 28, outubro de 2000, Lisboa. Desconheço outras traduções de Hall eventualmente existentes para a língua portuguesa, publicadas e com circulação em Portugal.]
Das três traduções mencionadas, a primeira – “A produção social das notícias” – pertence à fase do Stuart Hall “esquecido”. O livro sobre Identidades Culturais na Pós-Modernidade já se inclui no “deslocamento” para as questões sobre raça e etnia. Quanto à coletânea organizada por Liv Sovik – a mais relevante publicação no Brasil – apesar de contemplar um amplo espectro da produção intelectual de Hall, tanto cronológica quanto tematicamente, no seu próprio título – Da Diáspora, Identidades e Mediações Culturais – já indica alinhamento prioritário com as questões associadas à etnicidade e ao multiculturalismo.
Da Diáspora reúne doze ensaios e duas entrevistas, publicados/realizadas ao longo de um período de 20 anos [1980 a 2000] e é organizada em quatro partes: Controvérsias; Marcos para os Estudos Culturais; Teoria da Recepção e Stuart Hall por Stuart Hall. Embora os textos estejam divididos igualmente entre anteriores e posteriores a 1990 (sete de cada período), certamente não se trata de uma coletânea orientada para os estudos de mídia.
Como explica Liv Sovik na Apresentação da coletânea, datada de outubro de 2002:
Estes doze ensaios e as duas entrevistas são publicados em uma conjuntura específica no Brasil. A identidade racial brasileira e as formas brasileiras de racismo estão no centro do debate político-cultural. Estão nos discursos dos meios de comunicação e nos produtos culturais de massa, em pronunciamentos oficiais e nas universidades, onde a propensão a estudar as tendências sociais como se fossem externas foi interrompida pela proposta de cotas para alunos negros nas universidades, feita por diversas instâncias de governo. As políticas federais para a educação superior vêm provocando um debate sobre o lugar social e institucional do trabalho intelectual, sobre o qual Stuart Hall tem tanto a dizer. A seleção dos textos foi influenciada por essa conjuntura política, cultural e acadêmica e também pela preocupação em apresentar boas traduções de textos já consagrados ou mais recentes, relacionados a esse e outros temas atuais – políticas culturais democráticas, por exemplo.
Vale lembrar que, em outubro de 2002, a “conjuntura política” brasileira era dominada pela realização de eleição para a presidência da República [decidida em dois turnos, nos dias 6 e 27] e havia grande expectativa em torno da possibilidade de ser eleito, pela primeira vez na nossa história política, um operário de origem racial mestiça, migrante nordestino. Ademais, a eventual eleição de Luiz Inácio Lula da Silva trazia a esperança, para movimentos sociais historicamente comprometidos com a democratização da mídia, de que a regulamentação das normas e princípios relativos aos meios de comunicação, consagrados pela Constituição Federal de 1988, e a implementação de políticas públicas democráticas para o setor poderiam ser, finalmente, alcançadas.
Todavia, apesar de datada de outubro de 2002 e apesar de reconhecer-se “influenciada [pela] conjuntura política, cultural e acadêmica”, a Apresentação de Da Diáspora não mencionaestes fatos e, portanto, omite-se em relação à eventual contribuição que a leitura de Stuart Hall poderia oferecer especificamente para o debate público deles e para os estudos de mídia.
Salvo, portanto, o terceiro capítulo do Policing the Crisis, que nos chega via Portugal, as principais traduções disponíveis até hoje no Brasil, nos remetem, prioritariamente, para o Stuart Hall posterior à “virada decisiva no [seu] trabalho intelectual e teórico”, no rumo das questões de etnicidadade e do multiculturalismo.

2. Estudos Culturais, Hall e Gramsci
Pelo menos desde o final dos 70 e/ou início da década de 1980, todavia, independentemente da existência ou não de traduções e da natureza delas, pesquisadores e programas de pós-graduação brasileiros – em Comunicação e de outras áreas – estavam sendo influenciados pelos Estudos Culturais Ingleses, inclusive pelos primeiros trabalhos de Stuart Hall. Menciono dois exemplos.
Na perspectiva da construção de uma matriz teórica para eventuais “estudos culturais latino-americanos”, tentei fazer um contraponto entre o pensamento de Paulo Freire e os estudos culturais nos Estados Unidos e na Inglaterra em minha tese de doutorado em Comunicação defendida no Institute of Communications Research da Universidade de Illinois, em 1979, e publicada pela Editora Paz e Terra com o título Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire, em 1981. Anos mais tarde indiquei que, além da reconhecida contribuição para a tradição teórica da comunicação como diálogo e para a positivação do conceito de comunicação como direito humano fundamental, existe um enorme potencial analítico ainda inexplorado embutido em conceitos introduzidos por Freire como, por exemplo, “cultura do silêncio” [Cf. Lima (2011a), “Introdução à nova edição” e Lima (2011b), “Da cultura do silêncio ao direito à comunicação”].

Também Ondina Fachel Leal, em sua tese de mestrado em antropologia social, “A Leitura Social da Novela das Oito”, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1983, e posteriormente transformada em livro pela Editora Vozes, em 1986, tentara mostrar que “há reelaborações diferenciadas entre diferentes agentes sociais de um mesmo conteúdo culturalmente hegemônico” e que “as significações e o significado das vidas das pessoas são indissolúveis” (p. 11).
Ainda na década de 80, como já ocorria em relação a Raymond Williams [1921-1988] [o seminal Marxismo e Literatura de Raymond Williams foi publicado pela Editora Zahar em 1979] – um dos “pais fundadores” dos Estudos Culturais ingleses – o trabalho de Stuart Hall foi também fundamental para a compreensão do pensamento do filósofo marxista italiano Antonio Gramsci [1891-1937], sobretudo do seu conceito de hegemonia dentro do qual o estudo da cultura e da mídia se coloca em termos das relações de poder tecidas na sociedade.

Além do “Política e Ideologia: Gramsci” traduzido na coletânea Da Ideologia (Zahar, 1980), já mencionada, merece especial registro o artigo “Gramsci’s Relevance for the Study of Race and Ethnicity”, originalmente publicado em edição especial dedicada a Stuart Hall pelo Journal of Communication Inquiry da Universidade de Iowa, no verão de 1986 [a tradução deste texto faz parte de Da Diáspora com o título “A relevância de Gramsci para o estudo de ração e etnicidade”].
Os textos específicos sobre Gramsci e outros de Hall para os quais as ideias do filósofo da Sardenha constituem referência básica (por exemplo, “New Ethnicities”, 1988) conduziram à construção do conceito de “Cenário de Representação da Política” [CR-P] que introduzi em artigo publicado na revista Comunicação&política, em 1990 e foi, posteriormente, desenvolvido em diferentes textos [cf. Lima 1991, 1994, 1995, 1996 e 2004]. O conceito ainda hoje é utilizado como instrumento para a análise das relações entre a mídia e a política, especificamente nos processos eleitorais. [Em 1996, uma coletânea com o título Construindo o Cenário: A Mídia na Política foi organizada reunindo doze textos de aplicação do conceito de CR-P em processos eleitorais no Brasil (1989, 1992, 1994), México (1994) e Estados Unidos (1980). Depois de mais de três anos em poder de avaliador acadêmico ela foi devolvida sem que um parecer fosse dado e a publicação se inviabilizou. Uma lista incompleta de trabalhos acadêmicos que se utilizam do CR-P pode ser encontrada em Lima 2004.]
Da mesma forma e no mesmo período, programas de pós-graduação em Comunicação incluíam os Estudos Culturais Ingleses entre o elenco de disciplinas lecionadas.
Na primeira metade dos 80, o mestrado em Comunicação da Universidade de Brasília, por exemplo, oferecia “Comunicação e Estudos Culturais”, tema que veio a se tornar, inclusive, uma de suas linhas de pesquisa em 1986, embora por curto período. Ainda naquela época, com o apoio do British Council em Brasília, convidamos, sem sucesso, Stuart Hall para vir ao Brasil. Ademais, tentou-se a criação de um doutorado multidisciplinar em Estudos Culturais Contemporâneos na UnB, tendo como modelo o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham. Reuniões com representantes das pós-graduações em psicologia, história, filosofia, antropologia, linguística, sociologia, ciência política e comunicação foram realizadas (1989/1990), mas o projeto não logrou progredir.
3. A influência de Hall nos estudos de mídia brasileiros
Muito mudou em relação à mídia e aos estudos de mídia, nos últimos 25 anos. A revolução digital deu origem à convergência tecnológica que diluiu as fronteiras entre a comunicação de massa, as telecomunicações, o mundo novo dos computadores e a telefonia móvel. Consolidaram-se megaempresas globais multimídia e agências globais de publicidade e relações públicas. As redes sociais, os blogs, os e-mails passaram a oferecer um potencial de comunicação interativa de mão dupla, até então, inexistente. Os estudos de mídia foram obrigados a repensar-se e a formação profissional para o setor ainda busca novas referências e padrões.
No Brasil, mesmo diante de tantas transformações, a estrutura econômica e legal do sistema dominante de mídia não mudou. Permanece predominantemente privada, oligopolizada, privilegiada e assimétrica em relação a outros serviços públicos. E mais importante, permanece excludente e não representativa da diversidade e da pluralidade de vozes e opiniões que constituem o conjunto da população brasileira.
Apesar da enorme diferença entre os processos históricos de consolidação dos sistemas de mídia, tanto impressos quanto eletrônicos, na Inglaterra e no Brasil, algumas questões teóricas, lá e cá, eram e continuam sendo semelhantes.
O que pretendo a seguir é comentar três textos de Stuart Hall que tiveram – e ainda têm – importante influência nos estudos de mídia. Eles foram originalmente publicados em 1973, 1978 e 1986 e tratam, respectivamente: 1) da diversidade de “leituras” das mensagens da mídia; 2) da “produção social das notícias” e 3) da comunicação como campo (não) autônomo de conhecimento. Dois deles estão traduzidos e disponíveis no Brasil.

Breve excursus metodológico
Os escritos de Stuart Hall possuem duas características centrais: primeiro, eles são sempre conjunturais, isto é, surgem em resposta a determinada situação concreta; e segundo, pretendem ser uma intervenção na realidade, contribuir para o debate, interferir politicamente.
Em entrevista concedida a Heloisa Buarque de Holanda e a Liv Sovik, Hall afirmou:
Escrevo ensaios. (...) Meus escritos são criados em função de situações concretas, são sempre intervenções. Estão sempre procurando redirecionar uma dada situação. São escritos estratégicos. (...) Meu objetivo é usar a teoria para analisar conjunturas. Não sou um teórico no sentido abstrato [s/d].
Ancorado nessas características, pretendo oferecer uma análise comparativa e crítica dos três textos selecionados, tomando como referência a realidade histórica do sistema de mídia dominante entre nós e referências acadêmicas preferencialmente brasileiras. Ao mesmo tempo, coerentemente, espero que essa análise responda à conjuntura dos estudos de mídia no Brasil e que seja, também ela, uma forma de intervenção na realidade.
3.1 A diversidade das “leituras” das mensagens da mídia
A versão original de “Encoding and Decoding in Television Discourse” foi escrita no início da década de 70 e publicada na Media Series do CCCS, como “Stencilled Occasional Paper nº 7” (1973). Uma versão editada, com o título reduzido para “Encoding/Decoding”, aparece na coletânea de trabalhos do CCCS publicada pela editora Hutchinson de Londres, em 1980. Esta versão traduzida está na Parte 4-Teoria da Recepção em Da Diáspora (2003) junto à esclarecedora entrevista “Reflexões sobre o modelo de Codificação/Decodificação” concedida por Hall a um grupo de professores da Universidade de Massachusetts, em 1989.
Hall explicou nesta entrevista que “Encoding/Decoding” tinha sido escrito para questionar o “contexto teórico-metodológico” dos modelos empíricos positivistas tradicionais de análise de conteúdo e as pesquisas sobre “efeitos” da comunicação que predominavam na Inglaterra. Afirmou ele:
Codificação/decodificação é “contra uma noção particular de conteúdo entendido como um sentido ou uma mensagem pré-formada e fixa, que pode ser analisada em termos de transmissão do emissor para o receptor. (...) A mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como se pensa. A recepção não é algo aberto e perfeitamente transparente, que acontece na outra ponta da cadeia de comunicação. E a cadeia comunicativa não opera de forma unilinear” [Da Diáspora, p. 354].

Hall argumentava que existiam pelo menos três posições hipotéticas a partir das quais a decodificação de uma mensagem (discurso) televisiva poderia ser construída pela audiência: a posição hegemônica dominante; uma versão (código) “negociada” e uma versão (código) de “oposição”. [Não ignoramos a complexidade do conceito de decodificação que tem sido “decomposto” analiticamente em diferentes etapas de atenção, compreensão, aceitação e retenção.].
A leitura preferencial, explicou Hall, “é simplesmente um modo de dizer que, se você detém o controle dos aparatos de significação do mundo e o controle dos meios de comunicação, então você escreve os textos – até certo ponto, a leitura preferencial tem uma forma determinante. As decodificações que você faz se dão dentro do universo da codificação. Um tenta englobar o outro. (...) Isso é o que quero dizer com leitura preferencial. Trata-se de uma tentativa de hegemonizar a audiência que nunca é inteiramente eficaz e, usualmente, não o é” [Da Diáspora, p.366].
Vale dizer que, embora a maioria da audiência decodifique a mensagem no código referencial operado pela mídia, outra parte “negocia” o significado (aceitando-o no todo ou em parte) e outra rejeita o significado dominante.
“Codificação/decodificação” desencadeou uma série de pesquisas sobre as audiências de televisão na Inglaterra [Morley 1980, 1986 e 1995] e foi decisivo para a ruptura com o paradigma que não problematizava o papel das audiências na recepção das mensagens e, portanto, ignorava a possibilidade de múltiplas leituras de um mesmo conteúdo “emitido” pela mídia.
3.1.1 Brasil não é Inglaterra
O texto de Hall certamente circulou e influenciou pesquisadores brasileiros ainda no início dos anos 80. É necessário, no entanto, que se registre qual era, então, não só o nosso “contexto teórico-metodológico”, como o contexto político brasileiro, muito distinto daquele em resposta ao qual “Codificação/decodificação” foi escrito na Inglaterra do início dos anos 70.
Havia no Brasil, nesse período, uma grande influência, direta e/ou indireta, dos estudos da linguagem e da semiologia, originária da Europa continental, sobretudo da França (autores como Saussure, Barthes, Eco, Greimas, Kristeva, Eliseo Verón, dentre outros). Apesar de diferentes matizes, uma das tendências que teve consequências importantes entre nós, foi a “análise do discurso” aplicada aos “textos/discursos” literários e aos “textos/discursos” (mensagens/conteúdo) da mídia impressa e televisiva. Emergiu, então, no Brasil uma “teoria da recepção”, dentro dos estudos de mídia e próxima dos estudos literários, que se apoiava na chamada “polissemia das mensagens”.
O modelo apresentado por Hall em “Codificação/decodificação”, ao contemplar a hipótese de uma “leitura preferencial”, alinhada ideologicamente com o “discurso” dominante na mídia, por parte da audiência, se contrapunha a um tipo de “teoria da recepção” nascente que diluía inteiramente o poder da mídia, com o argumento falacioso de que cada membro da audiência construía individualmente sua própria leitura/significação para os conteúdos/textos/discursos/mensagens.
O Brasil vivia desde 1964 uma ditadura militar, com a voz pública de oposição censurada e assistia ao processo de consolidação de um conglomerado oligopolístico de mídia (jornal, revistas, rádio e televisão) que fazia a sustentação ideológica do regime, as Organizações Globo.
“Codificação/decodificação” possibilitou, portanto, não só a crítica ao “contexto teórico-metodológico” que assumia uma falsa passividade generalizada “dos receptores”, mas também e, mais importante àquela época no Brasil, permitiu o argumento de que havia uma leitura dominante (preferred reading) construída na e pela mídia. Ao contrário de uma “democracia semiótica de vozes pluralistas” (Curran, 1990), tínhamos uma “polissemia estruturada” (Morley, 1980) que conferia, sim, aos oligopólios brasileiros de mídia um imenso poder ideológico em tempos de ditadura.
Esse embate teórico entre posições antagônicas se fazia, sobretudo, nos espaços restritos dos poucos cursos de pós-graduação em Comunicação em funcionamento naquele período e certamente influiu no rumo do ensino e da pesquisa que se consolidou a partir da década de 80. O texto pioneiro de Stuart Hall iluminou uma trilha que tem sido perseguida por muitos pesquisadores desde então.
Nas últimas décadas a “teoria da recepção” avançou muito em complexidade. Vale mencionar, por exemplo, o modelo semiótico-textual proposto por Umberto Eco e Paolo Fabri, ainda no final da década de 1970, que introduz o conceito de cultura textualizada articulada na e pela mídia e que exige uma competência interpretativa que se organiza em torno de textos já consumidos e do confronto intertextual. Nela são as práticas textuais que se impõem, se difundem e se constituem como modelos. O leitor, além de estar numa posição totalmente assimétrica em relação ao poder da mídia, está também preso a uma gramática sem a qual sequer consegue decifrar seus conteúdos [Cf. Eco e Fabbri (1978)].
Na América Latina, a “teoria da recepção” se entrelaçou com teorias das mediações e pesquisas de audiência que passaram a ocupar um importante espaço nos estudos de mídia. Apesar do imenso poder que a mídia tradicional ainda desfruta, resta inconteste hoje que não existe audiência passiva e que o conteúdo da mídia pode, potencialmente, ser “lido” de múltiplas maneiras.
3.2 A produção social das notícias
Policing the Crisis – Mugging, the state, and law and order [Transformando a crise em questão de polícia – assalto de rua, o Estado e lei e ordem], é o resultado de um trabalho coletivo de mais de cinco anos do CCCS, desencadeado pela aplicação de penas consideradas elevadas a três jovens de diferentes origens raciais, acusados por crime de mugging, em Handsworth, Birmingham. O livro – longo, denso e complexo – responde a questões colocadas pela conjuntura política específica da Inglaterra nos anos 70, vale dizer, o período de construção e afirmação das políticas públicas neoliberais – simbolizado pela liderança de Margaret Thatcher – e tem como objetivo explícito ser “uma intervenção no campo da batalha das ideias” (Hall et alii, 1978a; p. x).
Policing the Crisis mescla análise conjuntural com discussão teórica e tenta mostrar como a cumplicidade dos meios de comunicação com o Estado, sobretudo em relação às questões de combate ao crime, transforma a crise de hegemonia numa questão de polícia, de lei e ordem. Tudo isso permeado por componentes racistas arraigados na cultura inglesa.
É dentro dessa problemática que um dos capítulos do livro, o terceiro, trata especificamente da “produção social das notícias”. O argumento apresentado é longo e complexo. Detenho-me apenas ao necessário à sua mínima compreensão.
Hall e seus colegas partem da afirmação de que “os mídia não relatam simplesmente e de uma forma transparente acontecimentos que são só por si ‘naturalmente’ noticiáveis. ‘As notícias’ são o produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas” [Hall et alii in Traquina, p. 224; em benefício da clareza foram feitas eventuais pequenas alterações na tradução portuguesa original do texto publicado em Traquina (1993)].
Entre o “conjunto de categorias socialmente construídas” destacam-se (a) a organização burocrática da mídia que produz as notícias em tipos específicos de categorias; (b) a estrutura de valores-notícia que ordena a seleção e a posição de determinadas ‘estórias’ dentro destas categorias; e (c) a construção da própria notícia que envolve a apresentação do item ao seu presumível público, em termos que, tanto quanto os apresentadores do item possam avaliar, o tornem compreensível a esse público. Isto significa reportar acontecimentos invulgares e inesperados para os ‘mapas de significado’ que já constituem a base do nosso conhecimento cultural, no qual o mundo social já está ‘traçado’ [idem, pp. 225-226, passim].
Em seguida são introduzidos os conceitos de definidores primários e secundários, consideradas “a ‘adequação’ entre as ideias dominantes e as ideologias e práticas da mídia” e também “a ‘relativa autonomia’ do dia a dia do jornalista e dos produtores de notícias em relação ao controle econômico direto” (ibidem, p. 228).
Hall e seus colegas afirmam que “a mídia não cria autonomamente as notícias; melhor, estão dependentes de assuntos noticiosos específicos fornecidos por fontes institucionais regulares e críveis”. Isso por dois aspectos da produção jornalística: as pressões práticas de trabalho constantes contra o relógio e as exigências profissionais de imparcialidade e objetividade. Em razão desses dois aspectos há um acesso exagerado à mídia, sistematicamente estruturado, por parte daqueles que detêm posições institucionalizadas privilegiadas. Dessa forma, a mídia tende a reproduzir simbolicamente a estrutura de poder existente na ordem institucional da sociedade. O resultado da preferência estruturada dada pela mídia à opinião dos poderosos é que eles se transformam nos “definidores primários” da matéria jornalística e os jornalistas profissionais em “definidores secundários” (ibidem, passim, pp. 228-229). Esta seria a estrutura básica dentro da qual as notícias são socialmente produzidas.
O capítulo explora ainda outros aspectos e se detém especificamente na cobertura de crimes – limite extremo de violação da lei e do consenso social – exemplificado na cobertura dos mugging que levaram à condenação dos jovens de Handsworth e onde se estabeleceu uma “relação recíproca” circular e mutuamente reforçada entre os definidores primários, a mídia e o judiciário até “fechar” ideologicamente a linguagem pública sobre o mundo do crime.
O capítulo é concluído com a reafirmação, em chave estruturalista e althusseriana, que “a articulação mútua entre as duas agências ‘relativamente independentes’ [a cultura do poder/Tribunais/definidores primários e a ‘cultura de significação’/mídia] é, a essa altura, tão ‘sobredeterminada’ que não pode funcionar de outra forma que não seja a de criar um ‘fechamento’ (closure) ideológico e controlador eficaz em torno do assunto. A essa altura, a mídia – embora involuntariamente e através de suas próprias vias ‘autônomas’ – transforma-se efetivamente num aparelho do próprio processo de controle – um aparelho ideológico do estado” (ibidem, pp. 247). [Apesar dessa chave estruturalista e althusseriana, Policing the Crisis apresenta uma defesa da posição gramsciana, sobretudo em seu último capítulo, “The Politics of ‘Mugging’” onde se argumenta incisivamente contra o althusserianismo de Paul Hirst]
3.2.1 Uma publicação descontextualizada
O terceiro capítulo do Policing the Crisis aparece na coletânea de Nelson Traquina (1993) desvinculado do contexto em que foi produzido. Transforma-se em uma das teorias do jornalismo, mais especificamente em uma teoria estruturalista, ao lado de outras teorias como a organizacional e a construtivista. Na sua “Introdução” a esta parte da coletânea (Segunda Parte), Traquina destaca o papel central dos definidores primários, o grau de autonomia dos jornalistas e a rotina e ideologia profissionais do jornalista (Traquina, p. 140-141, passim).
Na verdade, as “categorias socialmente construídas” – a organização burocrática da mídia, os valores-notícia, os “mapas de significação”, as pressões práticas de trabalho, os critérios de imparcialidade e objetividade –, podem ser considerados dentro de uma vertente dos estudos de jornalismo, que veio a se consolidar, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, como newsmaking ou produção/construção da notícia [Wolf, 1987; Parte 3, pp. 157-225]. Há semelhança entre as categorias de “definidores primários” e das “fontes oficiais” discutidas, por exemplo, no trabalho pioneiro de Leon Sigal, desde 1973. [Na perspectiva do newsmaking e apoiado em pesquisas pioneiras de Sigal (1973) e Gans (1979) sobre o papel determinante das “fontes oficiais” na rotina da produção de notícias, conferir a análise do jornalismo no Distrito Federal “Jornalismo Oficial: a Imprensa em Brasília” (Lima, 1993).]
O capítulo de Policing the Crisis, no entanto, como já observamos, se situa dentro de um paradigma teórico radicalmente distinto, faz parte de um argumento muito mais amplo e, em relação à “construção das notícias”, sua conclusão reafirmava o papel da mídia como “aparelho ideológico do estado”.
3.2.2 Transposição acrítica
A publicação de Policing the Crisis e seu capitulo “A produção social das notícias”, provocou importante debate na Inglaterra, por suas várias implicações teóricas.
A suposta “autonomia relativa” e estrutural dos jornalistas, por exemplo, recebeu duras críticas de James Curran. Ele argumentou que se existe autonomia para o jornalista esta seria apenas uma “autonomia consentida”, vale dizer, permitida se exercida em conformidade com as regras definidas pela empresa jornalística (Curran, 1989).
Por outro lado, a perspectiva geral do newsmaking, apesar dos inúmeros avanços que representa e ressalvadas as não pequenas diferenças entre a formação histórica do jornalismo na Inglaterra (Curran e Seaton, 2010) e nos Estados Unidos (Schudson 1978/2010), tem também recebido críticas fundadas, da mesma forma que os mitos da objetividade e da imparcialidade profissional (Carey, 1974/1997; Albuquerque, 1998; Schudson, 1997; Moretzsohn, 2002).
Com relação à aplicação acrítica das categorias e pressupostos do newsmaking no Brasil [Albuquerque (1998) analisa criticamente a aplicação do paradigma da produção da notícia (newsmaking) no Brasil e aponta corretamente a necessidade de se avançar nos estudos sobre as organizações jornalísticas brasileiras. Embora se refira especificamente a Stuart Hall como uma das referencias teóricas do paradigma, Albuquerque não cita o capítulo de Policing the Crisis, cuja publicação original é de 1978 (20 anos antes) e nem a tradução publicada em Traquina, 1993], há pelo menos duas ressalvas importantes a se fazer.
Primeiro, a profissionalização do jornalismo brasileiro é bastante diferente daquela que ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra. Além de muito recente, não compartilha o mesmo ethos profissional de “compromisso” com a objetividade e a imparcialidade identificado historicamente nesses países (Moretzsohn, 2002; Lavina, 2004).
Em segundo lugar, o pressuposto de que “a propriedade econômica da mídia está cada vez mais separada do controle diretivo pela dispersão crescente dos acionistas proprietários e de que os jornalistas tem um grau considerável de independência diante do controle supervisor” (Curran, 1990), simplesmente não se aplica ao Brasil.
As principais empresas jornalísticas brasileiras não são sociedades anônimas com ações ao portador negociadas em Bolsa de Valores e quadro diretivo eleito por acionistas majoritários. Ao contrário. Até a Emenda Constitucional nº 36 de 2002 [Até a EC nº 36 o texto do Artigo 222 da CF88 rezava: “A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, aos quais caberá a responsabilidade por sua administração e orientação intelectual. § 1º É vedada a participação de pessoa jurídica no capital social de empresa jornalística ou de radiodifusão, exceto a de partido político e de sociedades cujo capital pertença exclusiva e nominalmente a brasileiros. § 2º A participação referida no parágrafo anterior só se efetuará através de capital sem direito a voto e não poderá exceder a trinta por cento do capital social” (grifo nosso). O texto atual é o seguinte: “Artigo 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. § 1º Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação. § 2º A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. § 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. § 4º Lei disciplinará a participação de capital estrangeiro nas empresas de que trata o § 1º. § 5º As alterações de controle societário das empresas de que trata o § 1º serão comunicadas ao Congresso Nacional” (grifo nosso).], consolidou-se aqui uma tradição legal de empresas jornalísticas familiares, com proibição de que pessoas jurídicas se tornassem até mesmo sócias dessas empresas.
Essa tradição vinha desde o Decreto nº 24.776 de 1934, passando pelo Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 e pela antiga Lei de Imprensa de 1967, até a Constituição de 1988. A intenção do legislador sempre foi responsabilizar legalmente os donos das empresas jornalísticas por eventuais calúnias, injúrias e difamações.
A consequência prática da norma, no entanto, é que os principais oligopólios privados de mídia no Brasil são, até os nossos dias, empresas familiares comandadas por proprietários zelosos, muitas vezes membros de oligarquias políticas e que nunca abriram mão do controle, tanto editorial quanto jornalístico, de suas empresas. [A suposta “autonomia relativa” de jornalistas também não é padrão nos grandes conglomerados globais multimídia que praticam uma linha editorial e jornalística unificada. A News Corporation de Rupert Murdoch constitui o exemplo clássico. Cf. Watson e Hickman (2012) e Davies (2014).] Basta conferir na nossa história política o grau de comprometimento desses oligopólios com tentativas e golpes de estado (Carvalho, 2010). Ademais, a parcialidade partidária e a ausência de objetividade da imprensa brasileira têm sido comprovadas pelo acompanhamento empírico da cobertura jornalística, sobretudo em períodos eleitorais [Conferir o trabalho coordenado pelo professor João Feres Júnior (LEMEP-UERJ) sobre a cobertura jornalística das eleições de 2014 no site “Manchetômetro” http://www.manchetometro.com.br/], além de terem sido assumidas publicamente em declaração da então presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), em 2010 (Brito, 2010).
Nos nossos dias, quando este texto estava sendo redigido, a ausência de autonomia do jornalista no Brasil ganhou mais um exemplo poderoso: o editor de cultura do jornal Estado de Minas dos Diários Associados viu-se obrigado a demitir-se, após 18 anos nessa empresa jornalística, por haver sido proibido de escrever sobre questões políticas (Amorim, 2014), vítima de uma prática que se tornou rotineira na imprensa mineira (Carrato, 2014).
A aplicação, sem mais, de uma “teoria do jornalismo” retirada de seu contexto histórico e teórico, pode levar a omissões e distorções importantes na análise da prática do jornalismo, vale dizer, pode levar a conclusões distantes daquelas a que chegaram Hall e seus colegas do CCCS em Policing the Crisis.
3.3 A comunicação como campo (não) autônomo de conhecimento
Em 1986, a International Communication Association (I.C.A.), realizou seu encontro anual em Chicago sob o tema “Diálogo entre paradigmas: conexões” e convidou cinco personalidades acadêmicas para fazer as falas iniciais em torno das quais o debate se desenvolveria. Stuart Hall apresentou o trabalho “Ideology and Communication Theory”, mais tarde publicado em Rethinking Communications (1989). Desconheço que exista tradução desse instigante texto para o português.
Hall parte da constatação de que há uma crise do paradigma dominante behaviorista-empirista da pesquisa e da teoria em comunicação e identifica alguns de seus indicadores. O indicador desta crise sobre o qual ele mais se detém é aquele que chama de “esforço teórico para identificar processos, instituições e efeitos que podem de alguma maneira ser atribuídos à ‘comunicação’ como tal, separados das estruturas social, econômica, política e cultural nas quais os sistemas modernos de comunicação estão inextrincavelmente ligados (embedded)” [O A. fez a tradução livre das citações deste texto de Hall originalmente em inglês] [p. 42], vale dizer, a busca da pureza epistemológica para uma inalcançável teoria da comunicação.
Hall não nega a especificidade do campo da comunicação e reconhece que ele exige conceituação, teorização e trabalho empírico, mas afirma que há uma enorme diferença entre “a autonomia de uma disciplina de estudo pretensamente independente” e “o desenvolvimento de uma teoria dentro de um campo que chamaria de ‘regional’, isto é, o estudo dos efeitos reais e da estruturação interna de um domínio concreto de práticas onde – não obstante, a natureza de suas articulações com outras práticas no conjunto das relações sociais ou da formação social como um todo – não pode ser considerado como algo dado (be taken for granted)”. E prossegue: “Na minha visão a comunicação não é uma disciplina autossustentável. É uma teoria regional” [pp. 42-43].
Um pouco mais à frente Hall afirma que “a comunicação moderna não pode ser conceituada como externa ao campo das estruturas e práticas sociais porque ela é, de forma crescente, constitutiva internamente delas. Hoje as instituições e relações de comunicação definem e constroem o social; elas ajudam a constituir o político; elas mediatizam as relações econômicas produtivas; elas se transformaram em ‘uma força material’ nos modernos sistemas industriais; elas definem o tecnológico; elas dominam o cultural”. E conclui “o campo [da comunicação], no seu paradigma dominante, tem permanecido em grande parte teimosamente inocente sociologicamente” [pp. 43-44, passim].
3.3.1 A “inocência sociológica” brasileira
As implicações da posição defendida por Hall são enormes para os estudos de mídia, sobretudo no Brasil [Tenho insistido na necessidade de que a teoria da comunicação siga as recomendações de Hall e busque seu espaço dentro de “um campo teórico regional”. Cf. Lima 2001a, 2001b].

No que se refere às relações da comunicação na “construção do político” defendemos, no sentido apontado por Hall, que “a relação entre política e comunicação na Modernidade se organiza na ordem dos fundamentos. É insuficiente pensá-las através de uma relação interdisciplinar entre duas áreas de estudo que contém zonas de confluência. Não se trata, pois, de pensar as relações entre política e comunicação, mas do desafio de constituir um campo de pensamento no qual a própria política e a comunicação mútua e geneticamente se constituem em seus conceitos fundamentais. Política e comunicação são dimensões que não podem ser analiticamente isoladas sem se perder a compreensão do próprio objeto que se investiga” (cf. “Introdução” in Lima e Guimarães [orgs.], 2013, p. 10).
Ao contrário, boa parte do esforço intelectual que ainda se faz nos cursos de comunicação, dentro das estruturas rigorosamente departamentalizadas das universidades brasileiras, é a busca teórica de um objeto de estudo específico da própria comunicação. Texto publicado em coletânea sobre teorias da comunicação, afirma:
Seria um engano primário achar que a natureza interdisciplinar de um certo (sic) estudo poderia dispensar este trabalho de definição de seu objeto. Pelo contrário, ela exige um esforço redobrado, na medida em que este objeto tende, como no caso da Comunicação, a se confundir com o objeto de outras ciências. Na realidade, a afirmação peremptória da natureza interdisciplinar da Comunicação é, em grande parte, o testemunho paradoxal tanto da sobrevivência quanto da suposta superação de um problema que estranhamente resta pouco abordado, senão intacto: o problema da definição do objeto de estudo dessa disciplina [Martino in Hohlfeldt et alii, p. 28]. [Registro que, ao contrário de Stuart Hall, Paulo Freire mereceu um verbete no Dicionário de Comunicação – Escolas, Teorias e Autores. Cf. Lima (2014).]
O mesmo autor, em texto anterior, descartava a eventual contribuição do “pedagogo” Paulo Freire para a formação de uma “escola latino-americana de comunicação” argumentando que:
A teoria foi, e em grande medida continua sendo, o grande ponto fraco da produção latino-americana – de onde o paradoxo de classificá-la como uma escola. Uma prova disso é que autores de outras disciplinas frequentemente são apontados como pais fundadores ou como os grandes teóricos de nossa área. Paulo Freire, por exemplo, bastante reconhecido como pedagogo, acaba se tornando um dos quatro principais teóricos latino-americanos da comunicação, ainda que a real contribuição deste autor seja bastante discutível: sua visão humanista e filosófica da comunicação se deixa melhor expressar em uma teologia que toma o amor divino como fundamento e critério último da comunicação. Claro que isto só pode se dar com a entrada em cena de um conceito de comunicação com abrangência estratosférica e pouco propício à discussão científica [Martino, 2007; pp. 107-108].
Não é sem razão que, infelizmente, a produção intelectual no campo da comunicação fica muito aquém do desejado quando se trata da reflexão concreta sobre as complexas questões que o setor enfrenta, historicamente, no Brasil.
Hall, ao contrário da “pureza epistemológica”, argumentava em seu Ideology and Communication Theory, há quase trinta anos, sobre a inevitabilidade da articulação teórica da comunicação acontecer no campo regional “das estruturas e práticas sociais”. Vale notar, bem antes da revolução digital e da convergência de mídias.
4. Observações Finais
Nos anos 1970 e 80, Stuart Hall contribuiu decisivamente para deslocar os estudos de mídia dos paradigmas dominantes nos países anglo-saxões intelectualmente hegemônicos – tanto o behaviorismo positivista e empirista, quanto o economicismo do marxismo vulgar – para a complexa dinâmica da cultura contemporânea, palco privilegiado de construção das representações sociais e da disputa pelo poder.
Seu enorme legado intelectual deve ser celebrado embora, especificamente nos estudos de mídia brasileiros, não tenha exercido a influência que deve e merece, como tentei argumentar ao longo deste texto.
Na seção “Estudos Culturais e Comunicação” do verbete sobre Estudos Culturais Ingleses – cuja figura maior é Stuart Hall – do Dicionário de Comunicação (2014), Escosteguy escreveu:
Hoje, no contexto acadêmico brasileiro, as contribuições dos Estudos Culturais extrapolam o nicho da pesquisa de recepção, abrangendo, por exemplo, os estudos de culturas juvenis, de gêneros e formatos midiáticos, de relações entre música e mídia, de questões estéticas, entre outros [Escosteguy, 2014, p. 255].
Da mesma forma, Liv Sovik afirma que “dois textos de Stuart Hall marcam profundamente os estudos de Comunicação no Brasil. Um é o livro ‘A identidade cultural na pós-modernidade’, o outro o artigo ‘Codificar/decodificar’ (sic). (...) O que não aparece em ‘Codificar/decodificar’, é incidental em ‘A identidade cultural’ e passa sem muita discussão na área de Comunicação no Brasil, mas é central para a produção de Hall a partir dos anos 90, é a questão do racismo e da diáspora” (Sovik, 2010, pp. 1-2).
Seria possível afirmar, com James Curran, que o Stuart Hall dos primeiros trabalhos sobre a mídia, embora por diferentes razões, também foi “esquecido” no Brasil?

Referências bibliográficas
[As datas em parênteses referem-se à publicação original]
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Por que a não-regulação da mídia é censura: um caso recente

'NOVO JORNAL’

Verdades inconvenientes

Por Ângela Carrato em 03/02/2015 na edição 836
  
Há pouco mais de um ano, no dia 20 de janeiro de 2014, o site de notícias NovoJornal era tirado do ar e seu proprietário, Marco Aurélio Carone, preso. Não era a primeira vez que o site enfrentava problemas com os poderosos em Minas Gerais. Quatro anos antes, 12 integrantes da Polícia Militar, fortemente armados, comandados pelo coronel Praxedes e liderados pela promotora Vanessa Fusco, tendo em mãos um mandado de busca e apreensão, “visitaram” sua redação.

Entraram, vasculharam tudo e levaram todo o equipamento. Coincidentemente, poucas horas depois o site era tirado do ar. Quem o acessasse encontrava apenas um letreiro avisando que a publicação havia sido retirada do ar por ordem da Divisão contra Crimes Cibernéticos da Polícia Civil de Minas Gerais e que ações daquele tipo eram “muito comuns nos Estados Unidos”.

Na redação, a polícia encontrou apenas o jornalista Geraldo Elísio, editorialista e um dos cinco profissionais que atuavam no site. Uma semana após aquele “empastelamento”, o NovoJornal voltava ao ar, postado de um provedor sediado exatamente nos Estados Unidos. Outra adequação providenciada por seu proprietário, além de comprar novos equipamentos, foi alojar o servidor em uma sala com paredes reforçadas.

Já naquela época, o NovoJornal era sucesso de público. Enquanto toda a mídia impressa em Belo Horizonte não atingia 80 mil exemplares/dia, os acessos ao NovoJornal ultrapassavam os 400 mil/dia e não paravam de crescer. Pouco antes de seu “empastelamento” final, a publicação atingia picos recordes impensáveis pela imprensa mineira, chegando a um milhão de acessos/dia. Nesta operação, o site do jornal perdeu o br e passou a usar o pontocom, que significa domínio internacional.


Equipamentos destruídos

O sucesso de público explicava-se. O NovoJornal era o único em Minas a destoar do coro dos contentes. Enquanto em todos os demais se liam apenas matérias elogiosas e exaltando os feitos dos governos tucanos, o site publicava, quase diariamente, denúncias sobre os desmandos que aconteciam no estado. Entre outros assuntos, eram destaque a falta de licitação para contratação de obras por parte do governo mineiro, os privilégios para os “amigos” do então governador Aécio Neves, a prisão do delator do mensalão tucano Nilton Monteiro, documentos inéditos envolvendo o mensalão tucano, a relação completa dos 153 políticos beneficiados pela Lista de Furnas, irregularidades na construção da nova sede do governo mineiro, apelidada de “Aeciolândia”, além de denúncias sobre o contrabando de nióbio e a máfia do tráfico de órgãos, com sede na cidade mineira de Poços de Caldas.
Além destas denúncias, o site inovou ao anexar, ao final de cada reportagem, documentos que comprovavam o que estava sendo publicado. Outra inovação, digna de registro, é que além do espaço para os internautas se manifestarem, o NovoJornal publicava também, no final de cada matéria, que “o espaço estava aberto para a resposta de todo aquele que se sentisse prejudicado”. O espaço foi utilizado uma única vez, pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Entretanto, a emenda ficou pior do que o soneto. A nota da empresa, sem querer, acabou confirmando os fatos denunciados.
Apesar do recorde de público, o NovoJornal – que chegou a ter alguns anunciantes de peso devido à parceria feita com o Google – viu sua receita publicitária minguar. Os atrasos de pagamentos se tornaram frequentes, como igualmente frequentes passaram a ser as “visitas” de emissários de políticos tucanos propondo “acertos” e “negociações” para que Carone “baixasse” o tom das críticas. Cabeça dura, como o próprio Carone se define, ele não cedeu, mesmo ciente dos rumores de que “as coisas poderiam piorar” com a proximidade do ano eleitoral.

O que Carone não poderia imaginar é que ficaria preso nove meses, na maior parte do tempo incomunicável, em uma penitenciária de segurança máxima, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Em geral, as prisões preventivas, como no caso dele, não ultrapassam 90 dias e, se a pessoa apresenta problema de saúde, o cárcere pode ser substituído por prisão domiciliar. Mesmo sendo diabético, hipertenso e tendo sofrido um enfarte, que o levou à cadeira de rodas, permaneceu na prisão. Do lado de fora, seus familiares, em especial sua filha Cristina e seu netinho, sofriam todo tipo de pressão, humilhação e ameaças, com o apartamento em que moram sendo revistado diversas vezes.

No mesmo dia em que Carone foi preso, os equipamentos na sede do NovoJornal foram destruídos e o jornalista Geraldo Elísio, que há sete meses não trabalhava mais lá, teve seu apartamento revistado e seus equipamentos pessoais – notebook, HD externo, pen drive e cadernetas de telefones – igualmente apreendidos.


Ângulo desfavorável

A acusação contra Carone não poderia ser mais absurda. Ele era apontado como “suposto integrante de uma quadrilha” que teria Nilton Monteiro, o denunciante do mensalão tucano, como chefe. Sua parte no esquema seria “forjar e divulgar documentos falsos contra autoridades mineiras”. Já o jornalista Geraldo Elísio foi acusado de ser “braço direito” da organização criminosa. O curioso neste processo é que boa parte dos documentos divulgados por Carone foram os mesmos utilizados pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot para pedir pena de prisão de 22 anos para o ex-governador Eduardo Azeredo, em cuja campanha para a reeleição, em 1998, teve lugar o chamando mensalão tucano. Mais curioso ainda é que, após nove meses de prisão e pouco depois do segundo turno das eleições presidenciais, Carone foi solto por “absoluta falta de provas” que o incriminassem. No mesmo dia, Nilton Monteiro também ganhava a liberdade.

A esmagadora maioria da população mineira desconhece esses fatos. Não ficou sabendo dos “empastelamentos” do NovoJornal e se ouviu falar sobre a prisão de Carone provavelmente o liga a alguém que falsificava documentos. O desconhecimento se justifica. Em momento algum a imprensa mineira publicou uma nota, sequer, sobre a presença da polícia na sede do jornal e sua retirada do ar. Quando da prisão de Carone, ele foi apresentado como um “criminoso comum, que estaria chantageando autoridades”. Muitas das matérias sobre o assunto foram acompanhadas de fotos dele, tiradas de um ângulo que o mostravam com uma fisionomia quase assustadora, por ser uma pessoa alta, gorda, usar barba e estar muito tenso.


Direito de resposta não é praxe

Na época da prisão, Geraldo Elísio, que durante mais de três décadas atuou na imprensa mineira e tem um Prêmio Esso Regional de Jornalismo defendendo os direitos humanos, procurou colegas e dirigentes das publicações locais para solicitar direito de resposta. De uns, ouviu que “direito de resposta não era praxe”. De outros, o colega ficou de redigir o texto e solicitar aprovação da direção, que não aconteceu. No jornal Estado de Minas, onde havia trabalhado por décadas, sequer conseguiu falar com alguém da diretoria ou da redação.

Ao ser acusado de “braço direito” da suposta quadrilha, ele procurou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e, em audiência pública, encaminhou ao Ministério Público, com as assinaturas do presidente da Comissão, deputado Durval Ângelo (PT) e do vice-líder do governo naquela Casa, Duarte Bechir (PSDB), um oferecimento espontâneo da quebra dos seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. O que jamais foi feito, embora o jornalista mantenha esta oferta estendendo-a inclusive a qualquer órgão de imprensa do país que se interessar pelo assunto. Detalhe: Geraldo Elísio é aposentado pelo INSS.

Enquanto isso, os jornais mineiros continuavam publicando apenas a versão oficial e várias rádios aproveitavam a oportunidade para aumentar a audiência de seus programas policialescos. Foram sites como Conversa Afiada, CGN, Viomundo [e este Observatório] e as redes sociais os únicos a noticiarem o “empastelamento” final do NovoJornal e denunciarem a prisão de seu proprietário. Foram, sobretudo, as redes sociais que, ao longo de nove meses, cobraram a soltura de Carone e explicações sobre o arbítrio que cercou sua prisão.

Em sua página no Facebook, o jornalista Geraldo Elísio cobrou das autoridades mineiras, diariamente, explicações sobre o episódio, além de indagar as razões pelas quais não aceitavam a quebra de seus sigilos. Eu mesma fui uma das poucas pessoas que, durante este período, em minha página do Facebook, igualmente cobrei explicações das autoridades. Em alguns momentos, recebi de colegas jornalistas comentários estranhando as minhas postagens. “Você tem certeza que isto está acontecendo?”, argumentavam alguns, lembrando que não tinham visto nada daquilo na mídia.


Autoridades devem explicações

Pois é. Não deu na mídia, mas aconteceu! Claro que as autoridades mineiras devem – e muitas – explicações sobre o que fizeram. Se nada foi encontrado que incriminasse Carone e o NovoJornal, a publicação pode voltar ao ar e ele, no mínimo, deve ser indenizado. Não sei quais são os planos futuros deste empresário, pois nem sua saída da cadeia foi noticiada pela mídia. Novamente a notícia circulou apenas através das redes sociais e pude comprovar o fato por intermédio de pessoas próximas a ele. Pessoas que lembram que ele está arrasado.

Para nós, jornalistas e pesquisadores sobre jornalismo e mídia, a questão está longe de ter um ponto final. Ela demanda e continuará demandando uma profunda reflexão sobre o que aconteceu. Reflexão que envolve muito mais do que a denúncia de um ato autoritário, de arbítrio e de censura contra uma publicação e seu proprietário. Há inúmeras perguntas que precisam ser respondidas.

Se a maioria da população realmente não sabia do que aconteceu com o NovoJornal e com seu proprietário, o mesmo não pode ser dito dos jornalistas mineiros e dos veículos locais. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG) foi informado, no mesmo dia, sobre o que havia ocorrido. A então presidente da entidade, Eneida Costa, convocou uma reunião da diretoria para tratar do assunto, mas não conseguiu que fosse aprovada uma posição unânime. Vários integrantes da diretoria alegaram que por Carone ser publicitário e não jornalista, o fato não dizia respeito à entidade! Mais ainda: não faltou quem lembrasse dele apenas como “mau patrão”, pois em algumas oportunidades tinha deixado de pagar jornalistas que com ele trabalharam.

Eneida Costa acabou divulgando, em caráter pessoal, uma nota de repúdio no que diz respeito à busca e apreensão dos equipamentos do jornalista Geraldo Elísio que, aliás, até agora, não foram devolvidos, sem contar que, quando da apreensão, não foram feitos os devidos back up, bit a bit, como determina a lei e, mais, grave, não foi deixado com ele nenhum documento, o que pode dar oportunidade às autoridades policiais alegar não ter existido o problema. Mas, por outro lado, tendo o jornalista denunciado o fato à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e deposto perante um delegado e um juiz de direito da 2ª Vara Criminal de Belo Horizonte, o caso ficou documentado.


Volta aos “anos de chumbo”

Ao contrário do Sindicado dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) divulgou uma dura nota de repúdio ao fato, mantendo sua tradição de não compactuar com nenhum tipo de autoritarismo e arbítrio. Já as seções mineiras da Ordem dos Advogados do Brasil, do Instituto dos Arquitetos do Brasil e da Cúria Metropolitana primaram pelo silêncio, contrariando suas histórias.
A própria Eneida Costa, em entrevista ao blog CGN, confirmou que episódios como o do aeroporto de Cláudio, construído irregularmente e com dinheiro público nas terras de um parente do ex-governador Aécio Neves, eram de conhecimento dos jornalistas mineiros, apesar de a denúncia ter sido publicada, pela primeira vez, pela Folha de S.Paulo, e do assunto não ser mencionado por nenhuma publicação local. A revista CartaCapital, em pelo menos três oportunidades, publicou reportagens na mesma linha das colocadas no ar pelo NovoJornal, envolvendo o mensalão tucano, a Lista de Furnas e tráfico de órgãos. E não consta que seu proprietário ou que os repórteres que as assinaram tenham sofrido quaisquer constrangimentos.

Em outras palavras, não é razoável aceitar que a maioria dos jornalistas mineiros não sabia o que estava acontecendo, envolvendo as denúncias sobre desmandos e irregularidades cometidas pelos tucanos. Isto sem falar sobre a inversão de valores, como o fato de autoridades – que tinham por obrigação apurar as denúncias que estavam sendo publicadas – trataram de prender, a mando dos poderosos de plantão, quem as publicava, atingindo duramente um dos pressupostos da própria democracia: a liberdade de expressão e de imprensa. Em outras palavras, ao agirem assim, fizeram com que Minas Gerais retornasse aos “anos de chumbo”, apesar de o país viver em plena democracia.
A pergunta que fica é: por que quase todos se calaram? Por que Minas Gerais, “cujo outro nome é liberdade”, compactuou com este absurdo? Várias hipóteses podem ser levantadas. O senso crítico se forma através da divulgação feita pela mídia. Se ela silenciou sobre estes assuntos, natural que muitos não tivessem conhecimento. Outra razão: interessados em objetivos escusos obviamente atuaram para que o silêncio permanecesse. Silêncio que só foi quebrado após as eleições e, mesmo assim, sem a participação da mídia e da maior parte dos jornalistas mineiros.


Medo ancestral

E por que isto ocorreu? Por razões inconfessáveis? Por medo? Se foi por medo, qual a origem dele? Para alguns estudiosos, o medo generalizado dos mineiros é enorme e tem razões ancestrais. É possível localizar seu DNA ao tempo do Brasil colônia, quando a região era explorada pelas potências europeias de então. A população assistiu aterrorizada às mortes e perseguições envolvendo os integrantes da sedição de Vila Rica (Felipe dos Santos) e da Inconfidência Mineira (Tiradentes) e esse medo, séculos depois, ainda persistiria. Razão pela qual ao questionarem o receio que dava origem a um silêncio incômodo, ingleses ligados à exploração mineral indagavam aos nativos why (por que em inglês), originando-se daí a expressão “uai”, típica de Minas Gerais, que passou a ser repetida em lugar da resposta.

Todos estes fatores podem estar agrupados e servirem para explicar este silêncio, mas salienta-se a fase de “vacas magras” que vive a imprensa mineira, mal acostumada a se beneficiar dos cofres públicos para manter o seu ritmo de existência. Além disso, as transformações pelas quais passa esta mídia, sem a devida compreensão por parte de sua direção e de muitos funcionários, pode ter levado à rendição no sentido de manter o status quo e postos de trabalho, abrindo-se mão das finalidades precípuas da própria mídia e do jornalismo e, o mais triste, da ética e da honra.

A imprensa mineira, jornais e muitos jornalistas, com este episódio, quase se suicida, morrendo de inanição por falta de divulgar notícias e torcendo para que um dia nada aconteça para que possa publicar apenas notas sociais, pequenos anúncios e avisos fúnebres, sem imaginar que entre estes poderá estar o seu.

***
Ângela Carrato é jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG, mestre e doutora em Comunicação. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade


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